26 junho 2009

decretos

Quando eu for grande... É assim que tudo começa. Os homens que escolhemos (embora às vezes ainda achemos que são eles que nos escolhem... ), as relações de amizade que colhemos, as relações de trabalho com que nos comprometemos, o dinheiro que nos sobra ou que nos falta logo aos primeiros dias do mês, enfim, os embrulhos que damos à nossa vida começam num decreto que exaramos se calhar no colo dos pais ou quando reviramos as panelas na cozinha, nesse mundo que só alcançamos a poucos centímetros do chão. Há decretos com piada. Eu, por exemplo, dizia que quando fosse grande ia andar sempre muito pintada e muito arranjada. Há outros que têm uma piada relativa, como afrmar que quando crescermos vamos fazer tudo o que nos apetece e que ninguém vai mandar em nós (sim, esse também era o meu decreto). Há outros que não têm piada mesmo nenhuma, como decretar que todos os homens estão abaixo da qualidade e da perfeição do pai ou na periferia do altar da mãe... Estes lixam-nos. Porque com ou sem piada todos os decretos que fazemos na infância são, parece, estruturantes do nosso percurso. São trunfos, alguns, e forças de bloqueio, outros. E é na idade adulta, com a bagagem a rebentar pelas costuras, que sentimos os seus efeitos. Muitas vezes, esses decretos têm a parceria jurídica dos adultos, os consultores que ajeitam os nosso tótós com lacinhos e nos dizem que somos as meninas mais lindas e mais inteligentes do mundo, ou que dão uma palmada nas costas aos rapazitos (que ainda agora estão a descobrir que as meninas têm uma coisa que não é a pilinha) e lhes dizem que um dia vão conquistar as raparigas mais giras... Depois vem um tempo em que é preciso revogar esses decretos. Esse tempo é bem vindo. É bom quando se percebe que há leis que já não se aplicam. Que afinal não temos de ser a mais linda, o mais popular ou a bem comportada que não faz cenas. Que não faz mal chorar, que não perdemos a dignidade se mandarmos um berro de vez em quando e que os adultos que somos hoje são tão imperfeitos como os que conhecemos ontem. Somos todos crescidos a viver no mesmo sistema de justiça. Há decretos que podem cair por terra. Mesmo que depois fique um certo vazio legal.

24 junho 2009

pretérito presente

O calendário é a maior ilusão da cura. Somos como os prisioneiros dos filmes que vão riscando cada dia que passa, como se encurtássemos a espera ou arrumássemos mais um problema. O tempo cura tudo, dizem. Mas raramente estamos a tempo do tempo cronológico. A cura só começa quando recolhemos todas as pontas soltas que ficaram para trás no calendário e integramos essas partes nossas que ficam com os outros, com as situações mal resolvidas, com as discussões adiadas, com as emoções não digeridas. Compreender e aceitar essas partes de nós menos felizes, eis o início da cura. É um exercício verdadeiramnete difícil: viver o agora, aceitar o passado e não correr atrás do futuro. É que olhar para a frente é demasiado fácil. O amanhã só faz sentido se não nos doerem as costas pelos fardos que nos impusémos, se não nos doerem as pernas pelos passos que não demos, se não nos incharem as mãos pelas acções que não tomámos ou tomámos mal, se não nos apertar a garganta pelos gritos e emoções que não soltámos, se não nos doer a barriga pelos medos que não resolvemos, se não quisermos fazer sexo pelos abandonos que sofremos e que provocámos, senão nos doer a cabeça pelas lágrimas que não deixámos cair, se não quisermos beber pela rejeição que sentimos... O corpo de dor é um mal de calendário, de futuro apressado. Não vale a pena regressar ao futuro, se ainda não voltámos do passado.

23 junho 2009

generosidade

Desde criança que tenho um dom que me tem dado alguma vantagem sobre a minha espécie. Consigo ver sempre o lado negro dos outros. É instantâneo. É maravilhoso e poderoso, e na maior parte das vezes, ao contrário do que acontece com o resto das minhas facetas, é uma coisa que consigo manter na clandestinade e "disfarçar". Ou seja, na maioria das vezes, os outros mortais não imaginam que eu já lhes fiz o relatório e que sei o que eles próprios não sonham sonhar ou admitir. Aquele ar saturado que exala pelas frestas do corpo, que muitos não sentem, eu cheiro. É também um poder visual, como se fizesse a radiografia e visse as manchas e as fracturas da personalidade. É uma verdadeira capacidade de desmontar o outro e escolher depois o que quero ver e com o que quero conviver. No fundo, o lado negro atrai-me. Sei por onde vou, iludo-me com o que quero, desiludo-me com o que já sabia, e às vezes meto a mão na ferida. No fundo, eu amo o lado negro. Felizmente, os seres que convivem comigo e os que vou encontrando por aí são maravilhosos (tenho sorte na vida, é o que é) e têm luz suficiente, eles próprios, para aceitarem o meu lado negro... Em troca, gostava de desenvolver um novo dom, a acrescentar ao de criança: deixar que ao meu lado os outros brilhem mais que eu. Deixar que ao meu lado, os outros sejam sempre a melhor versão deles próprios. Como se todos os lados negros do mundo pudessem ser uma enorme mancha escura que se eleva no ar e nos deixa respirar a todos melhor. E assim seria generosa também comigo própria, porque pior que ver o avesso dos outros é ver o meu.

22 junho 2009

o gosto dos outros 2

o"O que torna tão aguda a dor provocada pelo ciúme é que a vaidade não pode ajudar a suportá-lo".
Henry Marie Beyle Stendhal


Mas a maior vaidade é a da mente. E achar que se consegue mudar a verdadeira essência de alguém, ao nosso jeito, é mesmo a maior delas.

19 junho 2009

adrenalina

Dá-me um solavanco delicioso quando surge um problema no trabalho, uma mudança de última hora, aquela coisa que não vem mesmo nada a calhar. Queixo-me, exaspero-me, arrepelo os cabelos, digo "ai a minha vida", e depois contorço-me na expectativa do sucesso, na resolução que ali vem de certezinha. Oiço as queixas dos outros, "e então agora?", "mas isso não é possível". Eu digo que sim, que é. E depois é mesmo. Que nada se consiga sem um bocadinho de esperneio prévio. Há que admitir (a nós e aos outros): precisamos de nos queixar antes de fazer e bem suceder.

criações mamíferas I

Percorrer todos bancos do país à procura do melhor 'spread' e achar que se fez um bom negócio.

Qual será a taxa para a estupidez? E será fixa?

o gosto dos outros I

Esquecer uma mulher inteligente custa um número incalculável de mulheres estúpidas.
António Lobo Antunes, Livro de Crónicas, 1998

Eu digo que nunca se esquece ninguém. Nem no amor, nem na amizade. E isso até custa muito pouco.

cartão único

Chegávamos a uma entrevista de emprego, ao médico, a uma festa, ao estrangeiro, a uma reunião de trabalho... conhecíamos alguém e, simples, apresentávamo-nos com um cartão único de acesso imediato a todas as nossas emoções. Não há modernização administrativa que nos valha nisto. Ainda temos de continuar a acumular números e documentos díspares que nos pesam na nossa burocrática existência connosco e com os outros.