15 outubro 2009

e ele veio atrás de mim

Naquela noite as escadas, ainda estranhas porque são de uma casa alheia onde não me mexo bem, pareceram-me intermináveis. Foi como se estivesse a descer até a uma parte de mim, o meu piso térreo, onde tenho reservadas algumas coisas sem qualquer tipo de utilidade. A ideia é um dia arrumá-las todas.
Até aí tenho-me quase sempre passeado no piso superior, mais arejado, mais bonito, com pelo na venta, nariz empinado e uns sorrisos demolidores. E ainda um olhar que, dizem, é fodido. E esta é a primeira vez que escrevo semelhante palavra. Mas não foi eu quem a disse, apenas aqui transcrevo.


Naquela noite, dizia eu, lá tive de descer ao piso térreo, que felizmente tem uma porta de janelas largas, com saída para a rua. A noite estava quente, mas eu estava a ferver e o fresco soube-me como uma água tónica com muito gelo e limão em pleno deserto. Ainda um dia, aliás, hei-de fazer isso, e com um bocadinho de gin se o dia estiver a correr bem.

Naquela noite, desci as escadas com um desejo terreno de deixar cair umas lágrimas. No piso superior as lágrimas são quase sempre de crocodilo ou então ficam armazenadas em forma de dores de cabeça e peso nos olhos, como se fizéssemos uma barragem. E sabemos que as barragens não são coisas da natureza, são coisas dos homens inteligentes que se lembraram de as inventar.

As lágrimas que vale a pena à alma derramar são terrenas, viscerais, vêm dos intestinos feitos num nó pelo medo, do estômago contraído de ansiedade, da barriga prenha de emoções mal digeridas. As lágrimas são a força da verdade que às vezes não queremos ver, na forma da mentira, sombra companheira de toda a vida que nos ajuda a manter o perfil.

Naquela noite desci as escadas, fui à varanda e limpei o meu chão com algumas lágrimas. E ele veio atrás de mim. E então a barragem abriu as comportas. Ele veio nas suas quatro patas, com a sua baba nojenta e a tropeçar nas orelhas, coitado, e ajudou-me a lavar o meu chão. E quanto mais eu chorava mais claro eu via.

E depois voltei ao piso superior, com todos os meus trejeitos de sempre. Não engano ninguém. Mas também já não me engano a mim própria.

Obrigada G.

Ps - Este post é patrocinado por uma marca de toalhetes de um grande hipermercado.

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