12 julho 2009

silêncio (ou a contrição de uma tagarela)

"A coisa mais difícil e mais bonita de partilhar entre duas pessoas é o silêncio".
Acabei de ler isto no último livro de Miguel Sousa Tavares, No teu deserto. Para uma rapariga como eu que sempre privilegiou a palavra, que tem fama de tagarela, e que, como diz a minha mãe, tem sempre conversa e até consegue falar com um chinês (!), o silêncio é um lugar para onde vou apenas quando estou cansada. Cansada demais para falar, portanto. É a reserva natural que vejo numa imagem da revista, à qual nunca vou mas que está guardada para um dia quando for fazer aquelas férias sozinha no meio da natureza; é a viagem de carro sem ouvir rádio (onde é que já se viu conduzir sem ouvir rádio?) que um dia hei-de arriscar; é enfrentar o mar diz a fio sem que ninguém me atire água ou vá comigo à esplanada dissertar sobre a vida, o amor e as vacas, como dizia o filme; é, enfim, como prescreve o MST, estar ao lado de um homem sem falar, mas também, e isto é o elo que me falta, sem ouvir. Porque eu sou uma boa conversadora, daquelas que também ouvem. Gosto particularmente de ouvir os homens falar e depois segue-se um jogo interminável de ping pong, que é actualmente o único exercício que pratico. Eu ping e ele(s) pong. Os meus amigos já me disseram que eu devia meter-me num frasco e ser distribuída como "desbloqueador de conversa" concentrado.
Lembro-me, a propósito disto, de um episódio que aconteceu há uns anos na faculdade, no bar, mais concretamente, e que gerou risos entre as minhas amigas. Havia um rapaz que nos inspirava, à G. em particular, alguma curiosidade; era calado, não particularmente bonito, mas era aquilo a que convencionámos designar "com piada". E toda a gente sabe que um homem com piada é o suficiente para criar o estado de sítio entre as mulheres. A G. até lhe deu uma alcunha, era o "Turra". E, naquele ano de caloiras, foram meses a fio de trocas de olhares na fila da cantina, no bar, nas festas, nos corredores. O rapaz só falava com rapazes e parecia-me a mim às vezes que de parvo o "Turra" não tinha nada e sabia o efeito que causava, apenas não sabia (ainda, porque entretanto deve ter aprendido) o que fazer com isso. Finalmente, à beira do fim das aulas do primeiro ano, eu, que já tinha transferência agendada para outra faculdade (com muitos menos rapazes com piada, vim depois a descobrir...) decidi livre de constrangimentos ensaiar um jogo de ping pong com o "Turra". Palavra de honra que nem me lembro como começou a conversa, sei apenas que aconteceu tudo de forma muito espontânea, na fila do bar, algures entre o pedido de um Compal de pêssego (na altura ainda não havia o Compal light manga laranja, e eu ainda comia croissants com chocolate, prova de que foi há muitos anos...) e um guardanapo. Algures em campo eu ping, ping outra vez e ele... pong. O "Turra" era um jogador nato, à espera que alguém fizesse o primeiro serviço. Falámos, falámos, falámos, juro que não me lembro de quê, mais de uma hora. As minhas amigas estavam de boca aberta e olhavam para nós com um ar entre o muito divertido e o espantado. Gostava de dizer que foi o início de uma bela amizade, mas não. Há casos assim. No fim do jogo, cumprimentámo-nos, limpámos à toalha o suor que ficou das emoções destiladas e cada um seguiu a sua vida.
A conversa que se seguiu entre as raparigas durou muito mais tempo, muitas horas, e do "Turra" partimos para outros, para outras, para a sempre infindável romaria de assuntos que temos entre nós até hoje. Mas a pergunta que me lançaram de imediato foi esta: De que é que tu tanto falaste com o homem este tempo todo? E eu devo ter respondido a verdade: de coisas. E ao longo da minha vida assim tem sido, arranjo sempre coisas para dizer, para as mais diversas pessoas e feitios, nos mais variados contextos profissionais e sociais, sobre os mais variados assuntos. Já tenho perguntado se dou seca, ao que me respondem invarialvemente que não, que não dou, que sou também boa ouvinte. E eu acredito.
E assim as minhas relações são sempre com muita conversa. Estruturadas por ideias e emoções, por disparates, risos, profundidades e, quero crer, palavras de conforto e de ajuda, mas também indignação, crítica, argumento, provocações e um pouco de "eu sei", "eu já sabia", "eu tenho um presentimento"...
Com os homens, e porque a fala do romance do MST com que inicio este post é a isso que se circunscreve - à relação entre homem e mulher, tem faltado esse silêncio, ou melhor, tem faltado, da minha parte pelo menos, dar valor a esse silêncio. O verdadeiro. Onde eu não falo, ele não fala, e as bolas e as raquetes estão arrumadas a um canto. Se calhar falta-me a capacidade de olhar para um campo vazio, repousar na bancada, ver a rede a baloiçar no vento, como fronteira abandonada entre as palavras que podemos guardar para nós. Porque eu e ele já saberemos de cor todas as palavras que foram necessárias até ao momento, e esperaremos serenamente as que se seguirão, quando retormarmos todas as conversas do mundo que connosco jamais se esgotarão.

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