19 dezembro 2009

a saudade até cola os cépticos ao tecto

A saudade está em tudo. E como a saudade só se escreve em português, é por isso que os portugueses podiam - se quisessem importar-se com as coisas práticas da vida (tais como a corrupção rasteira que nos tira do pódio da Europa) - estar em tudo, e em tudo em primeiro.

E a saudade é o exemplo maior disso. Os portugueses foram até agora os primeiros a dar o nome a uma coisa que todos os povos sentem mas não têm língua para falá-la numa única palavra.
Ou seja, somos os únicos que sabemos dizer um sentimento que toda a gente tem.

E os outros ficam mudos. E é uma mudez que os cala na presença de tudo o que acontece no mundo. Porque acima de tudo queremos dar palavras às coisas. Ponto.

A saudade está em tudo. E, assim, a saudade é tudo o que é alguma coisa na vida. E o seu contrário.

Acordamos com saudade da cama.
Acordamos com saudade de ir para a rua.
Deitamo-nos com saudade do dia que passou.
Deitamo-nos com saudade de dormir.
Comemos com saudade da comida da mãe.
Comemos com saudade de podermos comer o que quisermos e não o que a mãe manda.
Trabalhamos com saudade das férias.
Trabalhamos com saudade de produzir.
Dançamos com saudade da festa e de uma canção que nos arrepia.
Dançamos com saudade de descansar os pés.
Assistimos às guerras com saudade da paz.
Fazemos guerras com saudade do poder e de ganhar.
Viajamos com saudade de conhecer.
Viajamos com saudade de voltar.
Estamos com saudade de estar noutro lado.
Estamos com saudade de voltarmos a estar tal e com qual como estamos já.
Sonhamos com saudade de viver acordados.
Fazemos amor com saudade de fazer mais.
Fazemos amor com saudade de discutir, para depois fazermos as pazes...

Amamos com saudade. Saudade de tudo o que tivémos, do que já temos e do que ainda havemos de querer.

A saudade é somente a pressa de viver, como se o mundo acabasse se não a sentíssemos mais. E se alguma dia isso acontecer... Só em português se poderá dizer porque foi que morremos todos: falta de saudade.

08 dezembro 2009

o medo

O medo é uma catástrofe natural.
Natural porque é humano, catástrofe porque nos leva a cometer e a pensar (o que ainda é pior do que cometer) grandes disparates. Mas como em todas as catástrofes, o que se segue ao medo é inevitavelmente melhor, porque assim estava escrito na profecia que vem antes de todos os tempos: tudo o que acontece será por um acaso pensado, ou por um destino irreflectido. Como quando se diz que "tudo acontece por uma razão", mesmo que essa razão seja fruto de uma obra passional concebida por Deus(es). As profecias servem para acreditarmos nelas ou não, e eu acredito.

O medo, como escreveu Alexandre O'Neill, num poema assombroso, "vai ter tudo", mas antes que cheguemos a ratos, eu acredito que o medo vai salvar-nos; de sermos filhos da puta, de entrarmos com ganas de maiores em todas a sedes de poder raiano com a corrupção, de sermos rasteiros e manipularmos, de sermos moles de espinha, de não nos permitirmos amar.

Se não fosse o medo, não estaríamos atentos, em guarda, na expectativa de sermos melhores.

Ter medo diferencia os heróis dos cabrões, impulsiona os grandes feitos, ajuda à humildade que nos escapa pelas mãos ávidas de agarrar o reconhecimento que não concedemos a nós próprios, dá-nos a adrenalina para ir em frente - mesmo que às vezes ir em frente seja voltar para trás, até onde nos lembramos de ter identidade.

Ai "o medo vai ter tudo", e serão muitos os que nem experimentarão tê-lo, porque terão medo do medo, mas serão também cada vez mais os que se agarrarão ao medo como a mais segura dúvida metódica para serem corajosos.

O medo serve para avançar. Assim tem de ser, antes que dê cabo de nós.

09 novembro 2009

se o amor tivesse lógica não arriscávamos

“Se o amor tivesse lógica não arriscávamos”. Esta é uma fala roubada de uma série vista numa noite de insónia no sofá, com os olhos meio inchados.
Quando mudei pela enésima vez de canal, dei com uma criança que estava possuída por Deus. Nessa série Deus é “one of us” e tanto pode ser uma professora chata, como uma criança esperta ou um adolescente punk. E fala para além da Bíblia.
A criança lia uma história de princesas que acaba sempre com “… e viveram felizes para sempre”. A criança falava bem, ou não fosse Deus. Dizia Ela que depois do final feliz vem o trabalho. “O amor verdadeiro dá trabalho”. Mais uma fala roubada. Nem é grande novidade, mas dita por Deus... Guardei-as como se me tivesse caído a moeda que faltava no mealheiro onde conservo as boas e as más memórias emocionais.
E alguém perguntava porque não pode o amor ser mais simples, porque não podemos nós passar ao lado das discussões, das tentações, das angústias, das inseguranças?
E Deus falou assim: “Porque o amor é a mais bela e intensa luz do Universo, que ilumina tudo e todos. E como todas as luzes tem sombra”.
E na madrugada do nono dia do mês de Novembro eu descansei finalmente. Se à lógica nos convertermos jamais seremos capaz de amar.
Talvez até Saramago gostasse mais deste Deus. Um Deus que nos coloca desafios, mas não é castrador ou injusto. A liberdade é uma coisa fantástica. Com ela decidimos o que fazer com o destino. Não mudamos o destino, mas podemos escolher o que fazer com ele. E o amor é sempre o melhor caminho.

Nota: As falas roubadas não estão devidamente transcritas, porque não tinha papel e caneta à mão nem vontade de me levantar do sofá, mas querem dizer o mesmo. Palavra de Deus.

29 outubro 2009

os meus amigos são melhores que os da vizinha

Há uns tempos, uma das minhas melhores amigas, a G., disse-me que já não tinha espaço dentro dela para fazer mais amigos, ou pelo menos amigos à séria, daqueles a quem temos de dar atenção a valer, ter linha aberta 24 horas, acompanhar nos bons e nos maus momentos. Ela acha mesmo que não consegue dar tempo de qualidade a mais ninguém e prefere manter em bom estado as amizades que tem.

Eu e a minha amiga somos muito diferentes nesse aspecto. E assim mesmo gostamos muito uma da outra. Sobretudo porque não há cobranças de tempo e atenção entre nós.

Mas a declaração dela chocou-me um bocadinho, porque, apaixonada por pessoas como sou, sempre que conheço alguém que vale a pena e as nossas almas se cruzam, zás... é meu amigo. É raro, sobretudo depois dos 30, isso acontecer. Por isso me sinto privilegiada.

Na minha geração as "amizades" vão adquirindo variações que roçam o interesse profissional (ainda que não interesseiro), os amigos de infância perderam-se em caminhos díspares, os de faculdade servem-se apenas nos jantares de turma, os do trabalho não passam disso mesmo, e há os que casaram e morreram para a vida. É triste. Mas eu sou, reconheço, feliz nas amizades.

Vieram se calhar as redes sociais e os blogues, com todos os prós e contras já muito evocados em várias sedes, contrariar isso, oferecendo novas formas de encontro e partilha. E há sempre, pelo menos entre os portugueses, o hábito de sentar à mesa e pôr a conversa em dia, mesmo que depois da sobremesa ou de uns copos estejam todos mais uns meses sem se verem.

No fundo, quando as pessoas se querem bem não há regras para a amizade. A amizade pode sobreviver na intermitência dos contactos, nos sobressaltos das várias fases profissionais e pessoais porque todos passamos, no desacerto dos nossos timings.

Há apenas um sinal que é preciso entender para saber se estamos em presença de um amigo ou de um conhecido:
Não importa à quanto tempo não estamos juntos, se quando nos revemos os olhos brilham e o coração se enche de felicidade. E depois vem aquele abraço. É de amigo.

17 outubro 2009

o cavalo certo

A minha amiga G. tem uma mania que nos lambuza a boca sempre que a abrimos para as nossas intermináveis conversas, chama-se "situação limite".

Quando menos se espera, em quase todos os nossos encontros, lá vem ela: "situação limite... se só pudéssemos comer uma coisa até ao final da vida, o que escolhiam? Se só pudéssemos vestir uma cor qual seria? Se só pudéssemos ouvir uma música qual seria?" E por aí fora, até bater em todas as traves.

Já não sei porque voltas andei, hoje fui dar à brincadeira preferida da G. Se os homens só pudessem ter uma qualidade qual seria? E foi de rajada que me respondi: Coragem.

Coragem para nos amar. E a coragem só é precisa quando se tem medo.

Há assim três tipos de homens:

- Não têm medo e são os denominados filhos da p...
- Têm medo e são cobardes. São uns tristes. Merecem a nossa compaixão. E não o digo ironicamente, merecem mesmo.
- Têm medo e têm coragem proporcional. São o cavalo certo. Se apostarmos, o troféu é proporcional à responsabilidade. Por outras palavras: não convém armarmo-nos em parvas.

Há uns tempos escrevi: Um dia havemos todos nós de sair da idade emocional do liceu. Um dia.

o gosto dos outros 6

Não gosto de pés. Os pés dão-me cabo dos sapatos.

R., Lisboa, Outubro 2009


Nunca consegui perceber como é que uma mulher que adora, aliás, venera, sapatos, não gosta de pés. E é observá-la Chiado acima a colar pensos nos calcanhares comidos de inveja pelos sapatos comprados há menos de 24 horas... Claro que a culpa é dos pés, que não percebem os sapatos. Realmente as grandes paixões não se compadecem do corpinho.

15 outubro 2009

e ele veio atrás de mim

Naquela noite as escadas, ainda estranhas porque são de uma casa alheia onde não me mexo bem, pareceram-me intermináveis. Foi como se estivesse a descer até a uma parte de mim, o meu piso térreo, onde tenho reservadas algumas coisas sem qualquer tipo de utilidade. A ideia é um dia arrumá-las todas.
Até aí tenho-me quase sempre passeado no piso superior, mais arejado, mais bonito, com pelo na venta, nariz empinado e uns sorrisos demolidores. E ainda um olhar que, dizem, é fodido. E esta é a primeira vez que escrevo semelhante palavra. Mas não foi eu quem a disse, apenas aqui transcrevo.


Naquela noite, dizia eu, lá tive de descer ao piso térreo, que felizmente tem uma porta de janelas largas, com saída para a rua. A noite estava quente, mas eu estava a ferver e o fresco soube-me como uma água tónica com muito gelo e limão em pleno deserto. Ainda um dia, aliás, hei-de fazer isso, e com um bocadinho de gin se o dia estiver a correr bem.

Naquela noite, desci as escadas com um desejo terreno de deixar cair umas lágrimas. No piso superior as lágrimas são quase sempre de crocodilo ou então ficam armazenadas em forma de dores de cabeça e peso nos olhos, como se fizéssemos uma barragem. E sabemos que as barragens não são coisas da natureza, são coisas dos homens inteligentes que se lembraram de as inventar.

As lágrimas que vale a pena à alma derramar são terrenas, viscerais, vêm dos intestinos feitos num nó pelo medo, do estômago contraído de ansiedade, da barriga prenha de emoções mal digeridas. As lágrimas são a força da verdade que às vezes não queremos ver, na forma da mentira, sombra companheira de toda a vida que nos ajuda a manter o perfil.

Naquela noite desci as escadas, fui à varanda e limpei o meu chão com algumas lágrimas. E ele veio atrás de mim. E então a barragem abriu as comportas. Ele veio nas suas quatro patas, com a sua baba nojenta e a tropeçar nas orelhas, coitado, e ajudou-me a lavar o meu chão. E quanto mais eu chorava mais claro eu via.

E depois voltei ao piso superior, com todos os meus trejeitos de sempre. Não engano ninguém. Mas também já não me engano a mim própria.

Obrigada G.

Ps - Este post é patrocinado por uma marca de toalhetes de um grande hipermercado.

13 outubro 2009

acho mesmo muita graça a estes rapazes

Boa gente. E boa gente é difícil de encontrar. Sobretudo na blogosfera. (Embora nos conheçamos de outros filmes, ou de outros códigos...).

Vejam:
Esse Bandido
The Sock Gap

Um abraço. Afectivo.

Lisboa é uma gaja boa (poema retroactivo)

Lisboa é uma gaja boa...
... e vaidosa.
Cheia de curvas. Cheia de miradouros para se mirar, num jogo de espelhos narcisista.
O Tejo é um gajo vadio, com muita lábia e temperamental. Tão depressa parece um lago ou um rio muito certinho como o Sena ou o Tamisa, como logo se irrita e agita os pobres 'cacilheiros' que cobiçam a Cidade que protege.
Lisboa é também generosa, dá conversa a todos; Cristãos novos, mouros, celtas, viriatos, portucalenses...
Lisboa é uma bela actriz favorecida pela luz, que lhe disfarça as rugas. Não tem glamour nem griffe, mas tem muito mimo, feito beicinho, e uma falsa modéstia velhaca que lhe dá um certo charme.
Lisboa é mesmo uma gaja boa.

11 outubro 2009

há dias felizes

Hoje é um deles.

exercício com final feliz

Uma vez disseram-me que é quando estou mal que escrevo bem.
Talvez por isso me tenham ligado ontem a perguntar se ando muito feliz pois não tenho escrito no blogue.

Não sei exactamente o que significa "estar mal", porque no fundo nunca estou verdadeiramente mal ou bem. Ultimamente, sobretudo, procuro simplesmente estar. Que é o verbo mais fácil de aplicar.
Estar é como a história do ovo de Colombo, tão simples e, ao mesmo tempo, de tão ceguinhos que andamos, estupidamente inalcançável.

É um exercício difícil, mas muito compensador, este que ando a fazer desde há dois anos. Estar. Aliás, nos últimos três anos, além de falar pelos cotovelos, é mesmo o único exercício confessável que pratico.

O que é estar? Como se pratica?
Não é preciso nenhum equipamento especial nem pagar mensalidades absurdas num ginásio.
Nem corremos o risco de sofrer lesões e de transpirar que nem uns doidos.

Estar é precisamente o contrário disso tudo. É não correr à frente do tempo. É não levantar pesos que não valem o esforço. É não alongar situações penosas. É não contrair músculos com medo do que vão pensar de nós. É, enfim, não trabalhar partes do corpo desnecessariamente, a racionalizar as emoções.

Estar é difícil de praticar. É peciso treino diário. Às vezes até precisamos de um personal trainer para nos ajudar a não desistir. Porque praticar o estar implica resistirmos minuto a minuto a deixarmo-nos levar pelas emoções negativas e, até mesmo, pelas positivas.
A felicidade não pode despender disso. A boa forma significa que aceitemos o bom e o mau sem confundir isso com a nossa identidade.

Estamos lixados com o trabalho? Estamos descorçoados com o namorado(a)? Estamos f... com falta de dinheiro? Ok. Então estamos isso tudo. Aceitamos que existe infelicidade, tristeza, desilusão, o que quer que seja, dentro de nós. Mas isso não pode significar que nos assumamos como uma pessoa infeliz, triste, desiludida. As emoções não podem traduzir-se naquilo que somos enquanto pessoas. O que sentimos não é o que somos.

É de facto um exercício difcil de praticar. Eu disse.
Mas a boa forma que dia-a-dia vamos vendo ao espelho... ui, se compensa.

Da mesma maneira, com as emoções positivas. Euforia, encantamento, enamoramento, tesão, liberdade económica, sucesso profisissional. Tudo isto faz-nos sentir felizes, mas cuidado para não nos esticarmos na passadeira a julgar que vamos ganhar as próximas Olimpíadas e bater recordes.
São emoções. Habitam-nos por tempo indeterminado e intermitente.
Vale a pena deixar fluir a raiva, a ansiedade, a revolta, a alegria, o desejo, a tristeza, a paixão, tudo. É assim que tem de ser e temos de nos aguentar.
O que não vale a pena é confundir isso tudo com o que somos. Somos para além disso.

E já agora, é verdade que estou feliz por estes dias, e até um bocadinho tola. Mas a neura está sempre à porta e o mau feitio também.
Se calhar não tenho escrito no blogue porque ando em treino intensivo.

01 outubro 2009

mulher sem cão procura homem com coração

Se a minha vida fosse uma comédia romântica poderia ter este título: Mulher sem cão procura homem com coração... e sem cão.

Homens com cão? Não. Porquê? Porque não. Porque não não é resposta, diz a minha sobrinha Mafaldinha de três anos com o dedo no ar. Pois não é, mas para mim tem chegado e nunca ninguém me pediu explicações maiores sobre o tema.

Hoje resolvi eu mesma pedir-me explicações. E eu não consigo fugir a mim própria.

Ainda no outro dia olhava fascinada para o meu sobrinho de quatro patas, o Disco (um pug de sete quilos, com um focinho giro, giro, capaz de desarmar qualquer um), mas mantive, como sempre, a distância de segurança de pelo menos meio metro. A mãe não me perguntou porque é que eu não o metia no colo e o deixava lamber-me, como todos os outros tios fazem. Ela já sabe que eu não sou aquilo a que se chama uma dog person.

As dog persons são pessoas muito fora de mim, que eu jamais vou conseguir entender totalmente. No fundo admiro a sua capacidade de dádiva e de abnegação social. Ter um cão e devotar-lhe a atenção, o carinho e os cuidados que merece não é para qualquer um. E sinceramente sempre achei que não estou à altura.

Há várias teorias. Que tenho medo de uma mordidela, que fui atacada por cães em criança, que tenho a mania da limpeza e que confusão me fazem os pelos, as lambidelas e o cheiro, entre outras. E ainda o medo de sofrer mais uma perda. São todas verdade.
Mas, no essencial, a mais verdadeira é que ter um cão confronta-me com a fragilidade da vida.
Fico tensa quando percebo que aquele ser depende totalmente de nós, humanos, para sobreviver. Fico sem saber como lidar com a respiração, o palpitar das células debaixo do pelo, os rasgos de inteligênca, de lealdade e de total dependência que observo naqueles seres de quatro patas que levam muitas vezes as vidas dos seus donos à loucura.

Homens com cães foram sempre, portanto, um sinal de que os trabalhos são a dobrar.
Numa alegação perfeitamente egoísta e comodista da minha parte: um homem com cão é um homem que tem um grau de gestão dos seus afectos acima da minha capacidade. E num acto de contrição realmente digno do efeito inquisitório em causa própria: Um homem com cão tem menos tempo para mim.

Será da minha formação católica, ou a confissão é mesmo uma forma de libertação?

Pela quantidade de palavras acabadas em ão neste post, levo-me a crer que, por estes dias, ando com a palavra cão a soar com demasiada frequência na minha cabeça.

Não sou uma dog person. Não creio que alguma vez o seja. Mas sou uma pessoa que gosta de dog persons. Uma "dog persons lover", portanto. Servirá?




24 setembro 2009

a menina dos fósforos

Disseram-me que as pessoas dividem-se em dois tipos: os fósforos e as velas.
Disseram-me também para preferir a chama constante de uma vela, ao clarão fugaz de um fósforo.
Tenho um problema: gosto de fósforos e de velas.

O acto de acender um fósforo, aquele som do raspar, o cheiro, o poder de dar à luz com um simples gesto, ainda por cima baratinho, dá-me prazer. Não se brinca com o fogo, ralhavam os meus pais. E ainda me ralham. Porque eu gosto muito das pessoas fósforo. Incendeiam e incendeiam-me. É um problema.

A presença de uma vela encanta-me. À média luz pode não se ver a comida que se tem à mesa para jantar e confundirmos a realidade inebriados pelo "ambiance", como diz a F.
Mas as velas ardem até ao fim, como escreve Sándor Márai na sua obra-prima.

As pessoas que são velas são constantes. Têm sempre os mesmos pés, apesar de caminharem em direcções várias; têm sempre a mesma cara, mesmo que assumam diferentes faces perante as vidas que vivem; não escondem a alma, ainda que vivam incoerentes.
As pessoas que são velas têm sempre o coração do lado esquerdo, seja ele calhau ou diamante.

Gosto das pessoas fósforo e gosto das pessoas vela. Gosto de pensar que ardem umas com as outras e que todos os fósforos podem um dia acender a vela que há na gaveta lá de casa para quando falta a electricidade. Quando um dia lhes vier à lembrança a luz da alma.

22 setembro 2009

fui à terra (e uma antevisão de Novembro próximo)

Nos últimos dias fiquei sem argumentos, sem falas, sem bons diálogos. Perdi o rasto à minha personagem. Fiquei sem guião. Quando muito fui figurante e experimentei que quando nem papel secundário temos, tudo o que se observa, escuta e agarra, sente-se mais, dói mais. E até se chora.

Fui à terra. Foi o que aconteceu.

Quando vou à terra, no caso a minha cidade B, Coimbra, durmo numa freguesia rural, que está para a cidade do Mondego como Carnide está para Lisboa. Ali faço sempre duas coisas: visito o cemitério e os poucos familiares que me restam.
Fico sempre em paz por falar com os mortos e abraçar os vivos. O que na minha família é quase a mesma coisa, pois a memória cultiva-se mais que o presente.

A festa da minha família não é o Natal, esse é sempre passado em sossego, sem grandes ajuntamentos familiares e sem grandes consumos calóricos. A família é tão pequena que se divide pelas casas e mini-famílias que dela degeneraram.
A festa da minha família é a festa dos mortos, mas nada tem de mórbido, de tão natural que é.

O feriado de 1 de Novembro, Dia de Todos os Santos, é o dia em que esquecemos as dietas, comemos enchidos, mista grelhada com carne de porco a dar nas vistas, esquecemos o colesterol e a hipertensão que matou a maioria, fazemos um relatório sumário do que andamos a fazer na vida e acaba sempre com muitas castanhas (cruas para mim, se fazem favor) e muita jurupiga e vinho tinto. A política vem sempre à baila, claro, e é nessa altura que me ponho a par dos programas pólis e dos novos projectos para Coimbra. Com o adro da igreja da paróquia ao mesmo nível do Mosteiro de Santa Clara a Velha, que a minha família não tem muita noção da dimensão das coisas.

O dia começa três dias antes com a encomenda dos arranjos florais para as campas. A decisão entre antúrios e orquídeas é sempre muito pesada e a minha mãe exige ver, religiosamente, o portfólio das floristas. Depois é uma agenda complicada de gerir. Horas para ir buscar os arranjos, horas para colocar os arranjos e acender as velas que alumiam as almas. As nossas e as dos nossos mortos. E as horas em que começamos a fazer as brasas para o churrasco. E depois lá vamos em romaria juntarmo-nos a todas as outras famílias que no cemitério se encontram para celebrar. É mesmo uma celebração, das melhores que conheço. Abraços, risos, lágrimas, e a inevitável passagem pelas campas dos outros mortos, de pessoas que nunca conheci mas que eram "raparigas e rapazes da minha idade" como dizem a minha mãe e os meus tios.

É assim desde os meus sete anos. No dia seguinte é o meu aniversário. Quis o destino que eu nascesse no Dia dos Fiéis Defuntos. Eu sempre achei muito bem. Tinha lógica pois então. Que outro dia para eu nascer?

Neste último fim-de-semana, pensei nisto tudo. À memória dos Novembros passados, conclui que a vida tem uma lógica que às vezes só a morte nos faz entender. Calei-me por isso. Falei com os mortos em silêncio, pois eles já sabem tudo, muito mais do que até ao último suspiro nós saberemos. O mistério da vida é isso.

Fui à terra. Fui ao estádio, vi os cachecóis pretos da Académica, cantei a Briosa, vi os cachecóis azuis do Belenenses, lembrei-me de Lisboa, cidade A. Lembrei-me que o futebol não é assim uma coisa tão má, como venho dizendo nos últimos tempos.
Fui às compras, sem comprar. Lembrei-me que comprar trapos e pechisbeque não é assim uma vingança tão boa, como durante anos servi fria.
Fui à terra e fiquei sossegada. Nem um gin "éfe érre á", nem nada. Nem uma saída à noite para ver os rapazes giros de Farmácia (eu sempre achei que os rapazes do curso de Farmácia eram os mais giros, não me perguntem porquê). Neste fim-de-semana estive velha para isso. Lembrei-me que sentir-me velha para certas coisas, às vezes, não é de tótó.

Fui à terra e fiquei sem guião. O mistério da vida é não decorar papéis. Basta lembrar.

16 setembro 2009

o melhor ainda é não saber

Nos últimos dias chegaram a este blogue via pesquisa no Google várias pessoas que buscam a resposta para esta pergunta: "como deixar de gostar de alguém". A culpa é deste post que escrevi. Entristece-me que vão sem resposta, mas não posso ajudar. É que não sei mesmo, e eu até tenho a mania que sei umas coisas.

Mas o amor, e o Sitemeter disso me dá conta mais uma vez, é a mais velha preocupação do mundo. Transversal a todas as idades, opções sexuais, estatuto económico, situação geográfica. Alguém duvida?
Falo, obviamente, do amor carnal, do amor romântico, do amor entre dois seres com a potencialidade de troca de fluidos, porque só esse é comum. O amor no sentido genérico, extensivo aos laços familiares aos amigos, aos pobres e aos fracos, o amor genuíno e puro, sabemos, não interessa a todos... Mas o amor romântico? Até as bestas e os psicopatas o sentem, porque é hormonal, visceral. Dir-me-ão que isso já pode ser uma utilização abusiva da palavra amor. É verdade, mas quem o sente, seja lá quem for, não sabe isso nem quer saber.

Havia um bêbedo numa terrinha que conheço perdida no interior do distrito de Coimbra que andava sempre a dizer: "O importante é o amor". E ele tinha razão.
Venham as catástrofes naturais, as guerras, a crise económica, o desemprego, as eleições, a carreira, o carro topo de gama, a barraca da Cova da Moura, o duplex... O importante é... vamos fazer coro: o amor.
Estou convencida que mesmo nas mais duras provas a que a condição humana está sujeita, desde a cama do hospital, ao acampamento dos refugiados, há-de ser o amor que tece as conversas e as preocupações.

Imagino assim, por exemplo, uma conversa entre dois homens num porão de um barco cheio de imigrantes famintos de uma vida melhor, sujos, com frio, com fome... Um diz: "sabes há uma mulher...". Pronto. As conversas começam sempre com isto "há uma mulher" ou "há um homem" e as inevitáveis: não sei se gosta de mim, achas que gosta?, o que é que eu faço?, porque é que ela não gosta de mim, não percebo aquela mulher, não percebo aquele homem.

Ninguém percebe o amor. Essa é a verdade.

Uma vez escrevi esta dedicatória a uma pessoa que me desasossegou: "O melhor ainda é não saber. Nada." Escrevi-a num livro que se chama Um amor feliz, do David Mourão Ferreira. Um dos meus livros.
Ninguém sabe como deixar de gostar de alguém, mas toda a gente sabe como é gostar. Isso devia bastar. O resto vem por si. O melhor ainda é não saber. Nada.

mais uma birra

Acabem com os restaurantes com música ao vivo já! Já não há sossego para jantar? Ontem tive de estar aos berros para ouvir e para me fazer ouvir. E o senhor ainda pedia para cantarmos, bailarmos e desfazermo-nos em palmas. Grrrrrrrrrrr Pelo menos baixem o volume, se fazem favor. Valeu, como sempre, a companhia.

14 setembro 2009

cidade sentida

“ Ó tá nevoêrro, ó robarem a Trróia ! “
"Má fea qum batelão da Secil !"

in dialecto sadino mais recente
Fonte: um setubalense nascido e criado (obrigada BJ)



Tenho com Setúbal uma relação parecida com a que tenho com Almada, sou-lhes filha por empréstimo - uma foi o meu distrito, outra o meu concelho - mas nunca as considerei cidades na verdadeira acepção sentida da palavra, talvez porque durante anos vivi sempre o mais à beirinha possível do Tejo, pulando diariamente para Lisboa.

Antes que comecem a insultar-me, calma; Setúbal e Almada são cidades dignas desse nome, com vida e cultura próprias, e com a maravilhosa particularidade de partilharem as praias da Costa Azul (mesmo que agora se diga que robarem Trrroia).

Mas as cidades são para ser vividas ou distantes. Ou se vivem intensamente, ou estão longe de nós e queremos ir visitá-las, cheirá-las e imaginar como seria lá morar. Ora, Setúbal e Almada sempre estiveram demasiado perto e eu nunca as vivi como minhas. Não foram nunca cidades pensadas por mim enquanto tal.
Setúbal foi sempre o sítio ao lado, desde criança uma passagem para o Portinho da Arrábida ou para Tróia, ou um spot gastronómico onde se come choco frrrito e bom peixe fresco. Setúbal é, no fundo, uma cidade aonde tenho ido sem a fazer cidade e sem me fazer a ela enquanto cidade.

Lisboa sempre esteve perto. Vivo dentro dela. Vivi por duas vezes antes desta em permanente competição com a Caparica. Mas nunca nem hoje a senti aqui. É um lugar que está para além da sua condição terrena e existe antes de tudo na minha cabeça.
Aquilo que verdadeiramente amamos temos de o sentir longe, mesmo que cheguemos lá em cinco minutos. Só a sensação do longe nos faz querer estar sempre à beira do salto, ainda que saibamos exactamente onde vamos cair.

10 setembro 2009

Lisboa hoje, só hoje

Hoje apetecia-me que a cidade dormisse cedo, no sofá, em frente à TV, num estado de imbecilidade e dormência, sem necessidade de servir copos, de sacudir-se ao som do DJ e da fusão mais recente, sem ganas de se colocar na primeira fila para a estreia da peça, do filme ao ar livre, da festa de inauguração daquele novo sítio com vista do miradouro. Hoje queria que Lisboa nem sequer se pudesse ver a si mesma, corresse as cortinas com desejo de privacidade, fosse católica com vergonha dos seus pecados, fosse púdica nos seus afectos, sem olhares, nem seduções, nem comida fora de horas. Hoje queria que Lisboa nem sequer comesse e fosse de castigo para a cama. Quem dorme janta. Hoje queria que Lisboa fosse uma aldeia entalada na serra, sem equipamentos nem agentes culturais. Hoje queria que Lisboa fosse feia, tão feia que nem interessante podia ser. E que recolhesse a roupa dos estendais, tapasse os azulejos com panos pretos e sofresse um apagão. E às escuras eu dormiria com ela.

puro prazer

Quando alguém ama sapatos desta maneira só pode ter os pés no chão.

A Lolita está de volta e mostra-nos o seu vício, o seu luxo e a sua paixão com o mundo a seus pés

09 setembro 2009

Inimigos Públicos, onde está a história?

"Inimigos Públicos", o mais recente filme protagonizado por Johnny Depp, com realização de Michael Mann, está muito bem filmado mas quando saí da sala a primeira coisa que me ocorreu dizer, e de oca que me senti, foi: Onde está a história? A película vive da interpretação de Johnny Depp, excelente como sempre, e provavelmente a mais contida da sua carreira, que encarna John Dillinger, o assaltante de bancos que acabou por se tornar quase um herói na América dos anos da Depressão, pelo carisma que deixava no rasto de cada crime. O bom ladrão, cheio de estilo, lata e bom gosto, reparte a sua devoção ao crime, acima das convenções e políticas em vigor que despreza, com um amor intenso a uma mulher - Billie Frechette, superiormente interpretada por Marion Cotillard (oscarizada pelo papel de Edith Piaf em 2007).
Só a qualidade dos dois actores salva o filme cujo argumento é de grande inconsistência. Tem momentos belíssimos, é certo, - como a cena em que J. Dilllinger espectador de cinema se confronta com Clark Gable no grande ecrã a fazer de gangster no filme "Manhattan Melodrama", ou a cena em que assiste a Billie ser presa -, mas são apenas isso: bons momentos de filme, e tem alguns, mas desligados entre si, sem diálogos e uma trama narrativa que imprima intensidade dramática à obra.
Quem sai mais prejudicado pela falta de um bom argumento é a personagem de Christian Bale, o agente especial do FBI Melvin Purvis, que acabou por se suicidar um ano depois de finalmente ter posto fim à carreira de J. Dillinger. Ao longo do filme a personagem de Bale não adquire a solidez e a densidade emocional necessárias para fazer-nos sentir a angústia que o atravessa enquanto inimigo público de Dillinger, dividido que está entre o sentido de dever e a lealdade a um FBI investido de novas e mais duras regras no combate ao crime com as quais já nem sabe se se identifica. E esse é talvez o elo mais fraco e o que provoca mais fragilidade no filme.
Nem história de amor, nem história de Dillinger, nem história de gangsters. "Inimigos Públicos" só funciona porque andamos todos a ver filmes há tanto tempo, que já sabemos onde colocar os pontos nos is que faltam aos argumentos. E o Johnny Depp, claro, consegue sempre mover palavras e palavras de contentamento.

08 setembro 2009

gula

Acabaram-se as dietas milagrosas, o Dr. Oz e as lágrimas nos programas da Ophra. Não mais teremos as inestéticas "asinhas do amor" (o nome até é querido, com um travo a luxúria), nem barriguitas. A minha amiga R. descobriu a cura para o excesso de peso. Ela está absolutamente convencida que se comermos às escondidas, sem ninguém ver, não engordamos. Mas atenção, ninguém pode sequer sonhar que comemos. Se devorámos o pacote de bolachas, é necessário repô-lo de imediato. Se o resto do bacalhau com natas foi à vida às três da manhã, deve dizer-se que estava podre e teve de ir para o lixo. Se o bolo de chocolate desparece misteriosamnete do frigorífico, levámos para o trabalho para dar aos colegas coitadinhos. A R. é magra e come às escondidas.

07 setembro 2009

FCSH

Aos 15 anos decidi que ia entrar na FCSH - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, para fazer a licenciatura em Comunicação Social. Um dia fiquei deslumbrada com umas cavalariças que serviam de salas de aula. No telhado uns tipos apanhavam sol. Entendi que ali seria feliz e me formaria em grande estilo para ser a melhor jornalista do mundo e contar estórias nunca antes sabidas. Aos 23, disseram-me, saí comunicóloga e não jornalista. Michel Foucault, Walter Benjamin, Gilles Deleuze e tantos outros, semióticas, teorias da imagem e da representação, hermenêuticas e teorias políticas, tinham-me mostrado que ser jornalista era um pormenor. O curso serviu para alargar a minha visão medíocre, para entender que o mundo comunica desde as pedras da calçada ao vendedor de castanhas, e os média são apenas um dos pontos de passagem. E eu ouvi a FCSH a falar-me assim do fundo das cavalariças: Minha amiga agora é contigo. Entendi a mensagem logo nos primeiros tempos. Entendi-a cedo demais. Ao segundo ano virei as costas parcialmente à FCSH e dediquei-me à rádio. A rádio era como um amante, a tempo (quase) inteiro. Viciava-me e a FCSH não. Da rádio saí com a sensação de um dia voltar. Da FCSH saí com um diploma (e ainda estou para saber como). Maldita melancolia. Saudades da FCSH. Saudades da rádio.

deixar de gostar de alguém (oração)

Acontece. Custa. É como se uma parte nossa, à qual nos afeiçoámos com devoção, ficasse de repente para trás. E dizemos não, e ainda lutamos por ir buscá-la. Porque nos ficava bem, porque era só nossa, porque compunha-nos. São células inteiras de vazio. Nada é tão duro como sentir desfazer-se uma auto-imagem. E é bom que corram as lágrimas, ainda que secas. Chorar não é para todos. De repente deixamos de gostar de alguém. Já nem interessa se esse alguém ainda gosta de nós ou não, é completamente irrelevante. Um dia havemos de sair da idade emocional do liceu. Um dia havemos de ser inteiros e reunir todos os bocados que ficam para trás. Mas isso também não é para todos. Será para mim. Ámen.

04 setembro 2009

festivais na moda

Na última edição do Indie, o festival de cinema com maior número de espectadores na cidade, logo seguido pelo Doc, creio, percebeu-se que os festivais de cinema estão na moda. De tal forma que são já uma marca da cidade. Contando por alto, são pelo menos dez os festivais que se realizam em Lisboa. O Motelx, a decorrer até domingo no S. Jorge, vai na terceira edição e, a avaliar pelo que tenho presenciado, não me espanta que este ano suba nas audiências.
O sucesso desses eventos resulta numa maior eficácia dos mecanismos de divulgação, na qualidade da programação e, factor primordial, dirigem-se a nichos de mercado, captando a atenção de vários públicos. Do cinema independente, ao cinema de animação (Monstra), à Mostra de Cinema Brasileiro e à Festa do Cinema Francês, e de expressão alemã (Kino), passando pelo documentário (Doc, Panorama), e pelo gay e lésbico (Queer), os festivais de cinema têm de facto tido um papel inegável na criação de novos públicos na cidade.
Claro que a palavra moda, sobretudo se associada ao cinema de cariz menos comercial, parece causar algum desconforto nos espectadores assíduos face a uma eventual perda da identidade alternativa. Falo daquele público de primeira hora, dos verdadeiros amantes de cinema, do espectador que se senta desde a primeira edição na sala meio vazia para assistir a filmes que não vê nos complexos comerciais. A esses pertence a paixão pelo cinema no estado mais puro. São eles que ajudam a que os programadores não desistam, a que as entidades oficiais não fechem a porta aos apoios, a que os patrocinadores surjam numa época de crise.
Com o tempo - e os bons eventos culturais demoram tempo a consolidar-se, não são imediatos, e por isso se tornam marcas na oferta cultural da cidade (o Indie começou com pouco mais de mil e hoje ultrapassa os 40 mil espectadores, por exemplo) - os festivais de cinema ganham território. Aos espectadores primeiros seguem-se os segundos e os terceiros e os quartos que nem sabem bem ao que vão, mas ouviram ou leram que é giro, saem da casca e atrevem-se a descobrir novos espaços e novas linguagens.
Ainda ontem, no S. Jorge, um miúdo com pouco mais de vinte anos dizia que nunca tinha ido ao S. Jorge, mas tinha ouvido dizer que era "muito louco" e que o Motelx era fixe. E isto não é mau. Eu acho até que é muito bom. Um vizinho do meu amigo, com mais de 40 anos, cinéfilo via DVD, foi pelo primeira vez a um festival para saber como era e só perguntava em que dia ia lá o John Landis, de quem é fã e vem este ano ao Motelx.
Isto é mesmo muito bom. Isto são novos públicos. E se a publicidade, um certo sururu social e nocturno, com uns laivos cor-de-rosa, umas caras conhecidas e umas festas e muitos flashes acenderem paixões cinematográficas, seja.
No Indie ouvi alguém dizer: "Isto está a ficar um bocadinho morangos com açúcar....". Para mim, desde que as fitas sejam boas e a cidade mexa, só não vale a pena é ter amargos de boca. Precisamos de açúcar, só não pecisamos é de eventos à pressão, feitos com corantes e fermento às colheradas.

03 setembro 2009

ainda os homens feios

Gostar de um homem feio é uma tentação. Um estado de exibicionismo feminino. Achamos que somos mais belas quando mostramos sem vergonha ao mundo a capacidade de ver a beleza numa face masculina menos consensual. Basta um elemento bonito que se destaque no rosto: uns olhos expressivos, o nariz perfeito, os lábios carnudos, as sobrancelhas carregadas de ciúme, o queixo com covinha, o cabelo à McDreamy, um sorriso safado. Um destes centímetros de carne apenas pode fazer a diferença e servir de argumento para empenharmos os trejeitos mais sedutores que temos à mão. A voz de bronze e a inteligência emocional completam o quadro. E é verdade que também não podem ser demasiado bonzinhos.

o dilema das bonecas russas

A técnica do encaixe social leva-nos a viver acima das nossas possibilidades afectivas. Queremos encaixar no gabinete, na festa de casamento, no quarto da maternidade, na adopção, na relação extra-conjugal, na reunião de pais, no divórcio amigável, no divórcio à estalada, nas calças 36, nos sapatos 37, na revista rosa, no partido do poder, no partido do contra-poder, na inauguração, no namoro, no caso, no affair, na queca de uma noite, na relação para toda a vida, na abstenção eleitoral, na defesa de causas, no condomínio, no bairro histórico, na monovolume, no fiat 500, no Metro, no comboio, nas férias no Algarve, nos museus lá fora, no yoga, no reiki, na filosofia, no liberalismo económico, no Estado providencial, nos blogues, no twitter, no facebook, na recusa das novas tecnologias. Queremos encaixar. Metermo-nos dentro de alguma coisa e sentirmos que o assunto está arrumado. Mas a vida é como as bonecas russas, têm um sistema que desenrosca, salta a tampa e vêm todas cá para fora. Cada uma por si. E talvez mais felizes. E não necessariamente incompletas.

01 setembro 2009

gosto de homens feios

Acabam de me provocar via telefone. Estás muito lamechas. Tudo porque escrevi um post sobre o valor dos amigos de infância. Sinceramente já escrevi coisas mais lamechas, o que num blogue que se chama Estado Afectivo é muito provável de acontecer. Assim, para repor os níveis resolvi fazer um post sobre homens. Apenas para dizer que este é um post sobre homens e nada lamechas. Gosto de homens feios, daquele feio muito bonito, mas tão bonito que desejaria que fossem homens bonitos para eu os achar feios. Perceberam? Pelo menos não é lamechas.

geração de 70

O melhor dos amigos de infância é que nos fazem felizes.
Assemelho o encontro com um amigo de infância que já não via há muito tempo à sensação que experimento quando olho para fotografias antigas e acho que afinal não estou assim tão mal no retrato como pensava na altura. Nunca vos aconteceu?
Os amigos de infância guardam de nós imagens, acções, atitudes, posturas e ideais que não fazíamos sequer ideia que naqueles tempos fossem capazes de captar. O quê? Mas tu tinhas essa ideia de mim? Eu era mesmo assim? Mas tu lembras-te? Como se aos nove, dez, onze ou doze anos seja impossível ter a maturidade de fixar o outro para além dos jeans elásticos e coçados, dos ténis da Nike brancos de lona com o símbolo azul turquesa. Na verdade, em tempo real, não se tem essa capacidade. Não conscientemente. No entanto, em nenhuma outra fase da vida, como na infância e na adolescência, somos máquinas tão perfeitas de armazenamento de factos e imagens dos outros. Sem edição, sem censura, sem perdão.
Depois, na idade adulta esses dados vêm-nos à memória, com legendas e comentários, e uma nitidez incrível.
Se é verdade que é nos amigos que nos revemos, que são eles o nosso espelho mais credível, serão os da infância os mais capazes de nos devolver a auto-estima, o reflexo das nossas melhores qualidades, e até dos defeitos que acarinhamos, porque não sendo pecados graves são coisas cá muito nossas e pronto. É sempre uma surpresa e é sempre comovente quando alguém com quem andei de bicicleta, a jogar ao bate pé, na escola ou nos escuteiros, se lembra de como eu era selectiva nas amizades, de como tinha a mania de pedir coca-cola com gelo e limão e mandar para trás se não vinha assim, de como gostava de organizar coisas e de dar sempre a minha opinião, de falar de ovnis, Deus e almas de outro mundo, de como me passava com as injustiças de nariz no ar, dos joelhos tortos que ainda tenho (desgraça), das birras. De tanta coisa. E a mim acontece o mesmo. Quando reencontro um amigo de criança, surpreendo-me sempre por me lembrar de coisas que na altura me passaram completamente despercebidas, e faço questão de dizê-las. Porque os outros merecem que lhes lembremos que a sua vida não passou em branco para nós. Somos tão nós em miúdos que vale a pena ainda sermos nós em adultos, com uns inevitáveis e desejáveis arranjos aqui e ali de sofisticação e reciclagem do que não importa. Talvez a amizade seja a melhor forma de nos recuperarmos. Talvez seja a mais genuína segunda oportunidade que a vida nos oferece.

normal, portanto

Na esplanada delicio-me com a normalidade dos meus amigos.

Ontei sonhei com o Pedro Mexia. O quê? E era lindo e dava-me beijos. Está bem. A minha amiga está bem de saúde e recomenda-se. A sério.
Esta semana acabei com o meu namorado. E eu fiquei assim a saber, finalmente, aquilo que sempre tinha supeitado: O meu amigo é gay. Fiquei feliz.
O que é feito dos homens de verdade? Só vejo gays! Pois amiga, os homens gay também são de verdade, e sempre são menos uns a dar-nos chatices. Mas eu compreendo-a.
Tenho um amigo que não bebia álcool, mas depois de ver o filme 'Sideways' decidiu que ia gostar de vinho. Agora é um perito e tem uma garrafeira espectacular. Abençoado seja o amigo do meu amigo. Ainda hei-de conhecer essa garrafeira.
Sonhei que em minha casa viviam mais dois casais e duas crianças. Psicoterapeutas no serviço nacional de saúde precisam-se. Estará isso nalgum programa eleitoral? A mais de 90 euros a consulta, são poucos os portugueses que se conseguirão entender a si próprios.
Lisboa está cheia de malucos. Opinião generalizada.
Este Agosto esteve um tempo fantástico. Idem.
É tão bom regressar a Lisboa. Disse eu.

E assim vai o mundo. Não está mal de todo.

25 agosto 2009

antes do anoitecer

"Por isso quando pareço não concordar comigo,
reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
voltei-me agora para a esquerda,
mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés."

Fernando Pessoa, Minha incoerência de mim


Quando fiz 15 anos recebi de presente de aniversário das minhas amigas o meu primeiro kit anti-rugas. Fui também a primeira de todas a usar protector solar, numa altura em que andava tudo a besuntar-se daquele creme de cenoura que vinha de Espanha num boião e dava "um bronze", achava-se, espectacular. Havia ainda umas loucas que se banhavam em coca-cola, e eu benzia-me. Lembro-me bem quando fui à farmácia comprar o meu primeiro protector solar "especial para a cara", a senhora olhou para mim intrigada e perguntou-me se eu tinha algum problema de pele. Acho que lhe respondi que não, mas que também não queria ter. Ainda guardo o cheiro e a textura, era da marca Copertone e tinha factor de protecção 15, o mais alto que havia. Fui sempre, portanto, uma rapariga preocupada com a saúde da minha pele e embora tenha vivido grande parte da minha vida perto de praias, acabei por receber, já depois dos trinta, o maior elogio que se pode ganhar de um dermatologista: A menina não parece a idade que tem e isso é porque se protege do Sol. Eu sabia. O C. dizia que eu chegava a provocar insolações ao Sol, pois os raios reflectiam na minha pele e voltavam a ele ainda mais fortes... Ainda hoje, se algum amigo se esqueceu do protector, ninguém quer o meu : Não Ana, com o teu a gente não se queima. Mas eu queimo-me só com um arzinho. Sorte. Se não fossem os protectores ficava mesmo preta. Por isso sempre cumpri com brio o horário recomendado pelos médicos: sair da praia ao meio-dia e só regressar depois das quatro. Linda menina. E o que eu tenho infernizado as pessoas à minha volta com esta doutrina. Fundamentalista, gótica, exagerada, chata (o mais vulgar), etc. tenho ouvido de tudo, mas sempre, é certo, de forma carinhosa, como se eu fosse a voz da consciência em época balnear. E até já consegui que algumas amigas começassem a usar ecrã total (adoro este nome) todos os dias. São elas que me vão bater quando lerem o que aqui vem:
Este Verão virei-me ao sol sem temor. E tenho estado na praia na hora proibida. Ana, vamos embora. Nããooooo quero ficar mais um bocadinho, está tão bom. E durmo e viro-me no espeto, entorpecida pelos raios que penetram com prazer nas minhas costas. Bolas, e se sabe bem. Só falta arranjarem-me um protector solar com sabor a molho de churrasco. Por isso hoje fiquei de molho em casa, à sombra. Acordei com a cabeça tola a dar para o outro lado da almofada, escondida de vergonha, a pensar: o Sol vingou-se. No corpo tenho o cheiro a alfazema duma pomada para pruridos e alergias que, segundo o farmacêutico, este ano anda com muita saída. E dói-me o corpo todo, ai ai. Arrasto-me da cama para o sofá, e do sofá para a varanda, e da varanda para o chão. Pois é Ana Cristina, afinal também pertences à maioria que enlouquece no Verão. Meu querido mês de Agosto, sou uma entre tantas. E sou, mesmo quando me viro do avesso, sempre eu. Amanhã volto ao meu horário normal. A beleza e a saúde, por esta ordem (a sinceridade suaviza o pecado da vaidade), agradecem.

orgulho

Às vezes gosto de provocar e sinto orgulho nisso. Dá-me para isso instintivamente sempre que estou na presença de alguém que cai na exuberância intelectual, na arrogância de tudo achar saber. Quando começam a elencar doutrinas e autores lidos como se fosse uma lista de supermercado fico tão enjoada como quando andava no Expresso das Beiras, de Lisboa à Covilhã. A vertigem que sinto é semelhante à que sentia quando passava em Alpedrinha e fechava os olhos para não criar imagens mentais de um autocarro a cair por ali abaixo. E é isso que me apetece que aconteça a essas pessoas: que caiam por ali abaixo do pedestal académico. Que dizer? Não tenho paciência. Admiro pessoas sábias e inteligentes. Gosto de estar na sua presença, de ouvir, aprender, e para mim a inteligência é, não escondo, um afrodisíaco potente. Não suporto é quem enverga a erudição como identidade e humilha quem à sua beira emite inocentemente uma ou outra vibração, por muito ténue que seja, que possa servir de alimento ao apetite voraz dos intelectuais por disparates, erros e omissões. A última vez que senti a náusea do Expresso das Beiras, claro está que pequei mais uma vez. Depois de assistir a um vergonhoso debate entre um intelectual e uma pessoa inteligente (logo que não sabe tudo nem sonha saber), dei por terminada a conversa que pendia finalmente para o meu lado desta maneira: Ó pá não sei nem me interessa a tua pergunta, sabes, desde que saí da faculdade só leio a Vogue. Depois deixei o intelectual em Alpedrinha, a olhar lá para baixo, peguei na pessoa inteligente e fomos beber copos.

24 agosto 2009

meu querido Agosto

O pai que empurra o carrinho. O bebé alagado em suor com o chapéuzito comprado para as férias a dar com o fato de banho. A mãe que carrega as papas, as fraldas e as mudas de roupa. O avô que orienta a direcção a tomar na praia. A avó que ora segue refilando de algum contratempo a que ninguém liga ou sorrindo pela prole que iniciou. As avós são complexas. E depois os adolescentes que só querem que os primos mais velhos os orientem logo à noite para sair. As miúdas comparam fatos de banhos e tops. Os miúdos armam-se. Mostram-se todos bronzeados e elas empinadas em saltos que lhes entortam o andar. Mas persistem, não desistem de fazer figura. E não desistem daquelas calças ao fundo da barriga que não favorecem a figura e sairam de moda. Os miúdos são giros. Sorrio sempre ao vê-los. A verdade é que gosto de adolescentes. Sobretudo em férias quando a parvoíce e a inocência se mostram de barriga ao léu e com os cabelos em trejeitos que parecem terem sido encomendados de mota. A adolescência comove-me. E antes disso, as crianças. As crianças não me comovem, despertam-me e fazem-me rir de alegria. Ainda hoje um puto de sete anos ao ser contemplado com um espirro de uma senhora mais velha, que não teve tempo nem equilíbrio no barco para seguir as regras anti-gripe A, levantou-se a correr para o lado oposto da lancha com as pequenas mãos a tapar cada sarda do seu rosto, o nariz e a boca, os olhos muito esbugalhados, e desconfio que ficou sem respirar o resto da viagem. Tive de me conter para não dizer à mãe daquela criança que tinha parido um belíssimo contributo para o nosso futuro. Mesmo giro o rapaz. Do outro lado, os velhos locais de olhar húmido que assistem como eu ao desfile de tudo isto. Pergunto se sentirão o mesmo que eu. Ou se eu já serei velha e olho para tudo como eles. Não pergunto se vemos o mesmo, pergunto-me se veremos da mesma maneira. Com o distanciamento próprio de quem não se quer já, ou ainda (?), comprometer. Como se os outros estivessem num casting, no qual não haverá vencedores nem vencidos, todos têm o seu papel, mas que eu observo sem vergonha e sem nenhum fim a não ser esse mesmo - assistir à beleza da condição humana. Sempre assim foi desde criança, observar os outros tornou-se a maior fonte do meu rendimento escolar e profissional. Às vezes dão-me cotoveladas e pontapés debaixo da mesa para eu parar de olhar que as pessoas podem sentir-me mal. Mas não é por mal que eu o faço. É uma paixão. Eu sou apaixonada por pessoas. Pelas suas fraquezas, pela coragem de viver, pela sacanice, pela humildade, pela incoerência, pela estupidez, pela inteligência... Porque são as pessoas que me provocam mais emoções. Da raiva à compaixão, fazem-me sentir. E sentir é a única coisa que não nos faz arrepender de ousar crescer. Agosto, mês de estágio de todas as esperanças, destila o povo que há dentro deste país. Não é assim um mês tão estúpido.

21 agosto 2009

felicidade

A felicidade pode ser como as sobremesas sem açúcar. Todo o prazer com menos calorias. Às vezes até sem glúten e produtos lácteos.

Ver a minha mãe entrar mar adentro até ao pescoço, esfregar os olhos e conferir que não estou com uma alucinação provocada pelo excesso de sol. É possível perder o medo da água depois dos... depois de alguns, bastantes, anos de existência (ela não ia gostar que eu escrevesse aqui a idade dela);
Encontrar por mero acaso na esplanada o meu primo mais velho, que é, dizem, a minha versão masculina, e que quase nunca vejo porque a minha família é um arranjo celestial de dadores de sangue - só nos encontramos quando o quadro clínico exige urgentemente uma transfusão de afectos;
Dormir na areia e acordar com o cheiro a bolas de berlim;
Deliciar-me com mojitos e perceber que há vida e fígado para além do gin tónico;
Comer cadelinhas (abaixo de Sesimbra é conquilhas) apanhadas pela minha irmã, que passa o dia a fazer uns movimentos estranhos na areia com as ancas e com as pernas, que eu nunca consegui fazer e acho ridículos. Mas nunca digo não a cadelinhas. Amanhã nunca se sabe se volta a haver (já dizia um dos blogues que tenho aqui ao lado);
Ver famílias felizes sem ar de frete;
Ver mulheres bonitas, porque muitas mulheres bonitas fazem-me sentir mais bonita;
Ver homens bonitos, porque os homens bonitos fazem-me querer ser mais bonita;
Ver muitos bebés e muitas grávidas. Ao ritmo a que está a minha geração, não só se salva a Terra, como ainda havemos de conseguir que haja vida em Marte;
Descobrir um bom restaurante sem guias nem gps gastronómicos, apenas pelo cheiro e paladar para as surpresas;
Comer sopa de tomate com ovo esclafado depois de um dia de praia;
Tirar o biquini, ver os contrastes na pele provocados pelo sol e depois tomar duche de água fria, depois quente e depois fria outra vez;

Só não acredito na felicidade que é como os produtos light. Levam uns substitutos manhosos e ainda fazem pior.

16 agosto 2009

a inveja

A inveja é um pecado feio. Tão feio que até nos consome a beleza. As poucas rugas que eu tenho (a vaidade é um pecado menos feio...) talvez as deva às energias mais negativas que consumo a invejar as pessoas que viajam. É um misto de admiração e de, não há como evitar, inveja pura. Senhor padre perdoai-me porque pequei.. mas bolas, eu também já não me confesso desde que fiz o Crisma e agora até parece mal ir lá para confessar isto. São os que vêm de Nova Iorque, e os que passam a vida em Espanha, e os que já foram "ao Brasil, Praia e Bissau" (esta cantiga não soa aqui bem, porque eu também já fui ao Brasil e à Praia de Cabo Verde...), mas não fui a "Angola, Moçambique, Goa e Macau", nem sequer conquistei grande coisa além fronteiras. Quando oiço falar em Itália, babo-me, se me contam coisas da América, então enlouqueço. E a Argentina? Bem, só de pensar em Buenos Aires estremeço, é que eu quero ir dançar tango e ver um casamento a sair da igreja à meia-noite. Eu até gostava era de casar à meia-noite, porque quando me casei ao meio-dia estava muito calor. E também quero ir à Austrália e ao Alaska, e a Praga, a Budapeste e a tudo o que há na Europa para ver. E quero voltar a Paris, e a Londres, e a Madrid e a Barcelona e a sei lá mais onde. Depois dizem-me que tenho de baixar a fasquia, sujeitar-me a hoteis menos estrelados, a comer hamburguers e enlatados, e a dormir de quando em vez numa tenda... E têm razão. Tenho muitos amigos que não são ricos, alguns até ganham menos do que eu, e fartam-se de viajar. Invejo o seu espírito. Invejo que não façam a figura triste que eu fiz em Londres quando esfomeada, e sem vontade nenhuma de ir ao MacDonald's pela enésima vez, me pespeguei contra o vidro de um restaurante com muito bom aspecto e ninguém me conseguia arrancar de lá. E eu, juro, estava disposta naquela noite a usar o cartão de crédito para pagar o jantar a toda a gente. Não me deixaram. A ditadura daquela viagem com poucas libras foi muito pedagógica e quando me lembro das nossas aventuras naquela Londres, que na altura estava mesmo muito cara, apetece-me beijar as minhas amigas e dizer-lhes que valeu a pena o hotel vão de escada... A WC era tão fria que todas queríamos tomar banho por último para ver se a divisão ficava mais quente.
Depois, deixem lá também desculpar-me com a educação, sempre vivi com um lema: mais vale um fim-de-semana no hotel, que um mês no campismo. Os meus pais, longe de serem ricos, sempre preferiram uma semana de férias a comer em restaurantes a um mês a ir à praça comprar peixe para o almoço. Ou seja, as férias tinham de significar conforto e, para a minha mãe, o luxo de não cozinhar e apreciar a boa gastronomia. E eu acho que eles fizeram bem. E como sempre vivemos perto da praia, havia férias o Verão inteiro. Mas os meus pais nunca foram viajantes, nem me ensinaram a sê-lo. Tenho de aprender sozinha a conjugar uns piqueniques no Central Park com um jantar no Per Se; ou uns enlatados, com os pés de molho numa fonte romana, com uma pasta al dente feita por um chef igualmente al dente. E haverá sempre uns trocos para un gin tónico e um vestidinho a dar ares que não sou assim tão pobre. E ando cá com a mania de casar-me em Buenos Aires. Sim, eu quero ser viajante. Vou poupar nas peneiras e nos euros para fazer umas milhas antes que arda no inferno.

15 agosto 2009

à noite todos os gatos são diferentes

Tenho um preconceito estúpido. Isto se considerarmos, e eu considero, que há preconceitos menos estúpidos que outros, ou pelo menos mais justificáveis que outros. Já são mais do que muitas as vezes em que dou comigo a gabar-me de nunca me ter relacionado com alguém que conheci na noite. Não sendo uma coisa propositada (nunca calhou assim), este facto reconcilia-me. Se calhar serve de equilíbrio à minha natural tendência para a boémia, género: Estão a ver? Eu gosto muito de sair à noite mas não sou uma perdida. (Eu avisei logo que era um preconceito estúpido).Talvez porque embirro, precisamente, com essa associação leviana que frequentemente se faz da acção de engate à noite, como se as pessoas só saissem para procurar gajos(as). Ainda no outro dia quando disse a uma amiga que não tem namorado que devia sair mais, ela respondeu-me: achas que eu vou sair para o engate? Valha-me Deus! Apeteceu-me bater-lhe. É que para mim sair à noite é sair ao encontro dos outros e de nós, e de nós com os outros num contexto de evasão, preferencialmente com uma boa banda sonora, alguma bebida para brindar, muita conversa e talvez dançar e sentir o outro lado do dia. E sim, até se pode conhecer alguém interessante. Mas sobre isso eu não sou o melhor exemplo. Já dei comigo a inventar profissões e nomes que não tenho, a ficar com números de telefone aos quais nunca ligo e a dizer muitas vezes: Sabes? Não vale a pena. Mas também já conheci pessoas de quem fiquei amiga e que de dia não me desiludiram. E também já reencontrei amores à noite. Agora, encontrar o amor na noite? Só se for num dia muito especial.

momento google

Parece que houve alguns leitores que levaram mais a sério o meu post sobre numerologia e perguntam-me como se fazem as contas para saber qual o nosso número de base, ou o número de vida. Bem, eu avisei que sou uma leiga no assunto, mas sou também, quer queira quer não, uma mulher devotada ao serviço público. Assim, pelo menos para calcular o número de vida acho que posso ajudar; é o mais fácil de todos.
Cá vai um exemplo:

Data de nascimento - 19/7/1975
1+9+7+1+9+7+5= 39
3+9= 12
1+2= 3

Nada que não se encontre no Google, mas há quem goste de me ouvir...

Carrie de trazer por cá

As minhas amigas querem que eu seja a Carrie da série o Sexo e a Cidade. E a R. é quem tem mais essa mania. A R. meteu mesmo na cabeça que eu sou a Carrie. E está sempre a perguntar: Quando é que escreves sobre mim? Quando é que contas as nossas coisas? Quando escreves um livro sobre as mulheres e os homens? Palavra de honra que eu fico sempre a olhar para ela a pensar que ela é de tal forma minha amiga que distorceu as minhas capacidades e vê-me com um outfit que não é o meu. E que outfit tem a Carrie! Já lhe expliquei que o meu cartão de crédito não tem plafond para o que ela me pede. Mas ela é como os bancos nos anos 90, dá-me crédito e depois logo se vê.
A R. nem sequer é a maior fã da série, gosta mas não é a sua série de culto. Só que o Sexo e a Cidade, mesmo para quem não é fiel seguidor, ampliou no pequeno ecrã as virtudes e os segredos que tecem a amizade feminina. As costuras que unem cada pedaço de tecido das roupas que compramos juntas e vestimos quando vamos sair, as palavras de conforto e de alegria após um desaire ou sucesso amoroso, as discussões sobre as diferentes perspectivas da vida, os batons e outros acessórios fúteis que cobrem a auto-estima e dão um novo significado à palavra supérfulo. Mas o que sempre prevaleceu no guião de cada episódio é a amizade. Esse é o verdadeiro objecto trendy da série, mais do que o sexo ou a cidade. Embora, ainda hoje haja quem considere que as histórias se resumiam a muita depravação com sede em NY... O que é uma pena. Eu até costumava, a propósito disso, ter uma regra para distinguir os homens; aqueles que viam a série dessa maneira eram logo saneados. Só serviam para amigos, porque aos amigos tudo se perdoa.
Tenho Charlottes, Mirandas, Carries e Samanthas entre as minhas amigas todas. Samanthas, por acaso, estão em minoria (para eventual tristeza dos leitores masculinos deste blogue). Carries? Só conheço mais uma... a T. Mas acima de tudo, tenho amigas com um bocadinho de todas elas. Eu não me importo de ser a Carrie de serviço e tentar pô-las ao corrente de si próprias sempre que calhe. A R. fica contente.

(A R., já agora, é Carrie pela parte dos sapatos e Charlotte por várias outras partes, incluindo a afeição por seres caninos).

dicas

Há muito tempo atrás um amigo que me é muito querido, e que leva alguns anos de avanço sobre mim, disse-me que só há duas coisas que temos de saber sobre a vida: primeiro que é muito melhor estar vivo do que estar morto; segundo, a vida é muito, mas mesmo muito, irónica. Lembro-me que fiquei a olhar para ele com aquele ar que faço de menina que está a acreditar no que os mais velhos dizem, mas por trás está a tramar a próxima... e pensei que, no mínimo, ele era básico. E eu estava, pois claro, uns furos acima. Ontem lembrei-me desse episódio e fartei-me de rir sozinha. Tinhas toda a razão pá. Só acrescento uma coisa: A vida, além de irónica, é muito, mas mesmo muito, engraçada.

12 agosto 2009

numerologia

De todas as ciências que derivam da viragem espiritual do mundo que estamos a viver (até os mais cépticos sabem que isto é verdade, pois eles são os primeiros a notar que anda tudo noutro mundo), a Numerologia, na qual sou absolutamente leiga, é das que mais me fascina. Talvez porque a Matemática seja ainda para mim um mistério e uma disciplina muito pouco merecedora da minha concentração. Mas confesso que já tive a oportunidade de falar com uma numeróloga e não resisti a saber qual é o meu número! Embora não tenha conseguido acompanhar os cálculos que ela escrevinhou no papel, pois eu acho que há coisas que só os profissionais devem fazer (mais ou menos como a depilação, jamais experimentarei em casa), o que ela me disse bateu certo. Quem me conhece já deve estar a pensar: Pois claro que bateu certo, tu acreditas em tudo! É verdade. Sou uma crente. Eu e o agente Mulder dos Ficheiros Secretos.
Todos temos um número de base. O número da nossa essência. Depois vêm as combinações dos números que vamos somando ao longo das várias fases, idades e datas da nossa vida. Pelo que entendi dos cálculos, há ainda a juntar aos algarismos das datas de nascimento, e outras, o nosso nome completo, pois a cada letra corresponde também um número. Assim, vamos somando números ao longo da vida. Até aos 20, por exemplo, podemos ter estado a vibrar no número 3, a que correspondem determinados problemas, alegrias, missões e tarefas, e depois podemos passar para a ressonância do número 6 que emite novas frequências... Enfim, não é fácil para os leigos. Por isso, aqui vai a minha numerologia alternativa. Tudo ficcionado... mas, afinal, todos fazemos números.

1 - Exige muita responsabilidade e pode ser um verdadeiro tormento. Ou se é sempre o primeiro da turma a ir ao quadro resolver os problemas de Matemática, ou tem-se fama de líder. É o número da solidão e nesta vibração ninguém se casa, ou se se casa divorcia-se ao fim de um ano, claro. O sexo costuma ser raro, pois toda a gente tem medo de não ser o number one na função.
2 - Dizem que é bom e mais do que isso é multidão. Vive-se sempre para alguém nesta vibração. Corre-se o risco de esquecer o mundo à volta e normalmente dá azo a comprar casas, carros e meter-se em despesas desnecessárias. O 2 costuma incitar a ida aos bancos para contrair empréstimos. A parte boa são as viagens que favorece a sítios paradisíacos com praias de água quente, dando origem ao uso e abuso de palavras disparatadas.
3 - O 3 muitas vezes estraga o 2. Pode surgir na vida em forma de pequena criatura que não anda nem fala, chora muito e traz um número infinito de necessidades. O 3 é estranho e pode emitir muitas vibrações. É o número associado a triângulos amorosos, ilegais e consentidos. Favorece os crimes passionais. É considerado a conta certa que Deus fez para iniciar qualquer coisa: 1, 2, 3...
4- É o número em que se cai mais. Cai-se de 4 normalmente por tudo e por nada que valha a pena. Mas no 4 não existem os traumas do 3, sendo o número com uma vibração média mais apropriada para a concretização de uma família feliz, que cabe bem num carro médio e na mesa de qualquer casa. Há sempre 4 cadeiras na casa nova, antes de se ter dinheiro para comprar 6, e depois 8, ou, loucura, 10 ou 12. O 4 é quando se é mais médio em tudo e favorece a felicidade e a serenidade, pois percebe-se que a normalidade pode ser boa.
5 -É o princípio do desasossego. Nesta ressonância há sempre alguma coisa pendente. É-se ímpar e isso pode trazer problemas de adaptação. Emite vibração para beber muito chá e chatear o próximo. Tem-se a mania da liberdade e de receber muitas massagens ao ego e nos pés.
6 - Está-se sempre a seis graus de alguma coisa e de alguém. Diz-se que neste vibração encontra-se gente de todos os cantos do mundo e viaja-se para territórios pouco explorados. Favorece o encontro com estrelas de cinema e o aparecimento nas revistas cor-de-rosa. Nesta ressonância tudo é possível: ganhar um Óscar, jantar com o Johnny Depp ou dormir com duas top models de uma vez.
7 - Tem muito má fama. Suicídios, assassinatos, a chegada ao fim de uma série televisiva de culto, ondas gigantes no Algarve, eleições antecipadas... tudo é possível acontecer sob a vibração do 7. A crise dos 7 anos nos casamentos ainda é o que costuma acabar melhor, de resto, sob esta vibração mais vale não sair de casa nem ligar a TV. Se é um número 7 de base, então mais vale processar os pais e reencarnar assim que se possa noutra vida.
8 - O número que favorece a beleza. Nesta vibração os corpos adquirem as curvas no lugar certo. Arranja-se sempre um dinheiro para um operação plástica, come-se menos e vai-se ao ginásio como se caminhássemos para um restaurante italiano ou para os braços de um(a) amado(a). Dá-se o corpo sem a alma, mas a alma fica feliz na mesma.
9 - Nesta vibração anda-se à procura da felicidade como se ela viesse num mapa que ninguém consegue decifrar. É aqui que se compram mais GPS e as mulheres discutem mais com os homens por eles não quererem parar para perguntar a direcção dos sítios. É a ressonância mais responsável pelo gasto excessivo em combustíveis e ansiolíticos. As relações disfuncionais estão favorecidas e as idas ao psicólogo também.
10 - Nesta vibração surgem os upgrades. Sobe-se na vida, seja a nível material, nos empregos e na conta bancária, seja no plano emocional. O número 10 diz que já se sabe mais qualquer coisa, sugerindo crescimento, mas também a necessidade de saber o que fazer com tanta informação. É que nunca se sabe bem qual o valor do zero, apesar de ele fazer toda a diferença... Os 10 andam meio perdidos.
11- O número dos iluminados. Já se sabe tudo e é-se vítima da raiva alheia e das más línguas, Inclusive tende-se a ser alvo do cognome "chifrudo". Os 11 deste mundo estão a fugir para outro mundo e vivem actualmente em colónias muito à frente do nosso tempo. Há vôos especiais para lá, com partida de um aeroporto na OTA. Sim, ele existe mas só alguns o vêem... turururu

o gosto dos outros 5

I choose to hide, but I look for you all the time
I choose to run, but I’m begging for you to come
I wanna breake, but I know that you can’t take
I stay a while, to be sure that you by my side

Rita Redshoes, "Choose Love" (álbum "Golden Era", 2008)


Será que as nossas escolhas servem, afinal, apenas e só para contrariar as vontades que escondemos?

conto do imprevisto

A menina do capuchinho vermelho apaixona-se pelo lobo mau e vão viver para um castelo no alto de uma montanha. Todos os dias a capuchinho lhe dá beijos na esperança que o monstro vire um belo principe. Mas os monstros são sempre montros e as meninas que gostam de monstros vão sempre gostar de montros, sobretudo as mais belas. Um dia, quando a capuchinho já se tinha habituado à ideia de que o lobo nunca ia ser principe, bate à porta outra bela menina que traz um sapato na mão e pergunta se o lobo mau pode experimentá-lo. A capuchinho diz que sim, até porque ele não tem sapatos nenhuns de jeito e não gosta de ir às compras. O lobo mau calça o sapato e para supresa da capuchinho transforma-se num principe muito giro e cheio de estilo. O lobo mau que já não é lobo, mas continua a ser mau, apaixona-se pela bela menina que lhe deu o sapato e põem-se os dois a milhas num cavalo branco para outro castelo noutra montanha.
Moral da história 1: Nunca se deve deixar um homem andar descalço.
Moral da história 2: Lá porque um monstro virou principe, não quer dizer que outra mulher não o faça virar monstro outra vez.
Moral da história 3: Um homem é sempre um monstro e um principe em potência.

E andam todos a ver se vivem felizes para sempre.
The End

cidade euro

É uma questão de sobrevivência por estes tempos em Lisboa trazer sempre connosco pelo menos uma moeda de um euro. Sobretudo à noite. Há sempre alguém que nos pede alguma coisinha para comer, e que não, não é para aquilo que estamos a pensar. Eu já nem penso. Dou sempre os dois ou três euros que levo no bolso. O que mais me chateia é que já nem é por solidariedade, nem sequer por caridade. Já não há ideologia de direita ou de esquerda que me salve nisto. Dou por automatismo e desejo sempre boa sorte e, entrelinhas, que não me mace mais. Só consigo dizer não aos senhores das rosas. Sou alérgica, digo-lhes. Tempos estranhos estes em que dar não passa de um verbo de encher.

11 agosto 2009

birras (ou como gerir a causa da independência)

Depois do último fim-de-semana percebi melhor porque é que quando Alguém resolveu fazer a minha maqueta genética pôs lá uma grande torre chamada Independência. O raio da torre é alta que se farta, tem uma escada em caracol que desmotiva os mais persistentes e eu raramente desço e molho os pés no fosso que está à volta com um dragão psicadélico... A minha torre da Independência é o meu monumento de estimação, classificado pela UNESCO e tudo.
No último fim-de-semana percebi que preciso urgentemente de encomendar ao Arquitecto um projecto que reenquadre urbanisticamente e de forma sustentável a torre no resto do condomínio, pois corro o risco de ter cada vez mais dificuldade em manter o edificado em bom estado à custa de não querer abdicar das velhas estruturas... Obrigada a todos os que no último fim-de-semana aguentaram com a queda de alguns tijolos em cima da cabeça. Estar convicta da razão não justifica tudo e seguir o rebanho pode ser altamente pedagógico. Tenham lá paciência comigo, mas a reabilitação urbana é uma tarefa de jurisdição partilhada e uma grande chatice para os governos em causa própria.

emoções com BI

Pensei melhor e com o incentivo de várias famílias (isto da amizade é um bocadinho como a máfia, há laços inquebráveis) resolvi assumir a maternidade deste blogue. Afinal o problema das emoções começa logo quando não as assumimos. Doravante assino AS, de Ana Santiago, e pronto.

04 agosto 2009

Duplo amor?

A ideia de ver o Joaquin Phoenix dividido entre o amor por duas mulheres foi o suficiente para me pôr a andar para a minha sala de cinema preferida em Lisboa. Bem o Joaquin era capaz de me pôr a andar para qualquer parte do mundo se me desse razões para isso... E também o Johnny Depp, e o Benicio del Toro, e o Clive Owen... Sofro de vários duplos amores, o que é uma tragédia nos tempos insubmissos que correm. Ou como me disseram há uns tempos "tu não resistes a um pedaço de mau caminho". O Joaquin interpreta em Duplo Amor (Two Lovers no original), do realizador James Gray, um homem perturbado e complexo (não são sempre os melhores?), dividido, leva-nos a crer o título em português, e o trailer (que dá uma ideia errada, não necessariamente melhor, do filme), entre o amor por duas mulheres, não sabendo qual delas há-de escolher. Mentira.
À medida que o filme avança, e avança ao ritmo da mente bipolar do protagonista, percebe-se que Two Lovers não é mais do que isso: existem duas mulheres com quem se envolve, mas pelas quais não nutre o mesmo sentimento e entre as quais nem sequer está dividido. A duplicidade do Joaquin (Leonard) reside na escolha que tem de fazer entre quem ama de verdade, ou por quem está mesmo apaixonado (Gwyneth Paltrow, que interpreta a Michele, emocionalmente desconfigurada e apaixonada por um homem casado), e quem o ama de verdade e é emocionalmente mais estável (a Sandra, personagem mais sem sal, interpretada por Vinessa Shaw). O duplo amor é apenas e só, e não é pouco, um duplo amor por si mesmo, reflectido na forma como Leonard terá de escolher entre a forma como quer amar-se e viver consigo mesmo até ao fim da sua vida mais próxima.
Fora este um filme mais complexo, mesmo à medida de um bipolar em convalescença frágil, e apresentar-se-iam mais mulheres no elenco (embora a mãe de Leonard, representada por uma muito envelhecida Isabella Rossellini, seja também mais um amor a que o personagem tem de corresponder e dar afectos), porque a forma como escolhemos viver o amor e a vida toda ela não passa apenas por duas opções. Vendo bem, são milhares as opções, cada uma delas escarrapachada nas pessoas com quem nos vamos relacionando. E não há uma opção igual à outra, tal como não há ninguém igual a ninguém.
E se a bipolaridade (e não é à toa que o argumento atribui esta doença ao protagonista) mais cedo ou mais tarde atravessa todos nós - nem que seja quando nos ataca nalguma etapa mais fragmentada da vida, em que entramos em piloto automático e passamos por cima das emoções negativas e saltamos imediatamente para o pólo oposto (onde vamos curtir, porque a dor dói e isso é muito chato para a nossa espécie) - o filme leva-nos a algumas conclusões:
- Não se ama da mesma maneira duas pessoas (ou mais). Isso é uma grande treta e é uma treta em que muitos caem. Aliás, o Leonard sabe desde logo, e nós também, que a Sandra dá-lhe até uma certa pica e algum conforto, mas a é a Michele quem personifica o desejo de fundir-se de corpo e alma.
- Não há escolhas erradas. O Joaquin acaba por ficar com a Sandra porque a Michele (Gwyneth) volta para o homem casado que entretanto deixa a mulher. Ou seja, não escolheu a Sandra, apenas escolheu uma forma de felicidade após a primeira hipótese não dar certo... Irrita um bocadinho, mas não se pode culpar o homem. Se alguém se devia queixar era a Sandra, a designada "sem sal", que no entanto também escolhe não ser a number one. Já uma vez escrevi que dos orgulhosos não rezam com sucesso as histórias de amor.
- A ideia de que o caminho mais difícil é sempre o mais apetecível não é assim tão óbvia e linear. Há quem desista à partida do inalcançável ou de que custa um bocadinho mais a conseguir. Digamos que o caminho difícil é apanágio dos complexos. E há, dêem-se graças a Deus, muita gente simples neste mundo, a quem não falta um pingo de inteligência. A anemia intelectual nem sempre produz escolhas simples e fáceis. Os bem nutridos de QI também não procuram necessariamente sempre o fruto mais proibido. Há escadas que não se lançam ao cimo da árvore mais alta do pomar nem com toda a inteligência do mundo. E há quem se limite a colher apenas os frutos que caem das árvores, mesmo que estejam podres.

Leonard, o bipolar em convalescença frágil deste filme, escolhe a melhor forma de amor por si que consegue vislumbrar no momento. Mas ao menos subiu à árvore. Que ninguém lhe puxe a escada e o deixe cair. Um dia ele próprio cai em si. Um dia todos caímos em nós.

28 julho 2009

a minha vida vale mil imagens que não se vêem

Entre todas as coisas que gosto de fazer nesta vida, hoje mesmo, agora já, é meter-me no carro e ouvir rádio até de madrugada. Estrada fora: um cigarro, uma música e uma boa história. E assim percorro a noite na redoma do meu carro, que está dentro da redoma sonora da rádio, que está dentro do lado esquerdo da minha alma. Palavras, canções, vozes e todas as imagens apenas e só dentro de mim. Às vezes acho que é a única razão para ter carro. É a rádio que estraga a minha visão ambientalmente sustentável da cidade.

23 julho 2009

criações mamíferas 5

Os políticos e os pensadores deste país criticarem e queixarem-se da abstenção dos portugueses nas eleições.

Depois de ler ana de amsterdam só me ocorreu pensar que bem pior do que os portugueses não irem votar é a abstenção metódica dos políticos e comentadores. E depois queixam-se. O não comprometimento é uma das piores formas da condição humana. E toca a todos, mesmo que às vezes o estrume esteja à porta e o cheiro seja insuportável.

22 julho 2009

pub emocional

Os conselhos para a vida são como a publicidade no intervalo dos filmes ou de uma boa série, são uma seca. O meu preferido, que chega a dar vómitos, é: "Se eu não gostar de mim quem gostará". Há outros mais refinados como o"Você é a sua melhor companhia". Mas logo hoje dei comigo a ser a publicidade no meio da seca de vida de uma amiga. Ou seja, enviei-lhe via msn uma variação mal escrita desses slogans rasteirinhos: "tu tens é q sentir-te bem com o q fizeste e n precisas de ng para te fazer sentir emlhor". Contextualizando: a minha amiga cumpriu hoje, com grande estilo, uma difícil tarefa profissional e estava triste porque de momento não tem ninguém (ser masculino) que se sinta orgulhoso dela e a faça sentir feliz. Contextualizando ainda mais: a minha amiga queria ter a seu lado um homem que reconhecesse o ser maravilhoso que ela é. E eu, lá vai disto, disse-lhe a verdade. Porque por muito pimbas que sejam esses conselhos, tirando-lhes a foleirice, o cliché e a desidratação intelectual, são verdadeiros como o caraças, esse mito urbano. Como podemos esperar que os outros nos reconheçam se nós próprios não somos capazes de nos reconhecer? Esta frase que acabei de escrever acabou também de me dar vontade de chicotear-me fortemente com o fio do carregador do telemóvel, que é o instrumento de tortura que tenho mais a mão, mas é a verdade. E já que estou neste caminho sem retorno, penitencio-me com mais um spot (a minha vida segue dentro de momentos, após este intervalo para pub emocional): Ninguém me compreende. E... ? E têm de ser os outros a compreender-me, se eu própria, tantas vezes, na minha escrita interna, não ponho um a à frente de um b? Depois disto vou pôr o filme a correr e desejar que tenha um final feliz, de preferência com a minha amiga a arranjar um namorado que valha a pena. Porque mais cedo ou mais tarde, depois de termos dado uns quantos beijos e abraços em nós próprios, surje alguém que vai gastar a saliva connosco e encenar aquele beijo cinematográfico que todos queremos, mesmo que o outro esteja de quarentena com gripe A. Somos uns pirosos, e a culpa nem sequer é da publicidade.

20 julho 2009

o gosto dos outros 4

"Sua P.... do C... és uma V... ficas sempre a rir e ganhas sempre... Sua P..."

Mulher jovem num largo de Lisboa, Julho de 2009


Na quinta-feira à noite, assisti a um episódio de "faca e alguidar" ou de faca na liga, não sei bem como se diz. Lisboa de mão na anca estava ali no largo onde eu moro aos berros, a jorrar lágrimas de dor e de raiva que subiram em repuxo até ao meu terceiro andar, entupindo uma veia do coração da cidade. Um avc emocional em potência. Ali estava ao vivo um corpo de dor. Observei a cena sem pudor, de cima, com a distância física e o conforto de quem não faz parte da estória. Mas, sem saber bem porquê, senti humedecerem-se os meus olhos e o coração contraiu-se. Ali estava aquela mulher, pareceu-me bonita, bem arranjada, perto dos 30, ou talvez um pouco mais, a debater-se nos braços de um amigo que a tentava chamar à razão e devolver-lhe a dignidade sem sucesso. Enquanto isso, outra mulher, também ela bonita, pareceu-me, afastava-se em silêncio pela mão de outro homem. Nisto, o corpo de dor abateu-se sobre o chão e ali ficou uns bons momentos a sacudir-se ligeiramente, como se as últimas emoções vividas estivessem lentamente a dar de novo lugar ao verdadeiro ser que habita aquele corpo. Pareceu-me que era uma das histórias mais velhas do mundo: um homem e duas mulheres. Já todos conhecemos o argumento. E assim, na quinta-feira à noite, houve mais uma mulher que confundiu o que sente com aquilo que é verdadeiramente. Fosse ela boa ou má namorada (?), tivesse ela toda ou nenhuma razão, não sei nem me interessa, ela é seguramente um ser muito melhor do que aquele em que minutos antes se transformou pela corrente de emoções que as pobres células do seu corpo não souberam processar. E ela ficou entupida da cabeça aos pés, das mãos ao coração, com a alma submersa. A dor tem a força de uma maré viva e à onda que bateu na minha janela eu não soube o que fazer, molhou-me os olhos e eu devolvi-a sabendo que nada podia fazer por aquela mulher a não ser fechar a janela e voltar ao meu sofá. A dor é pessoal e a cura intransmissível.

16 julho 2009

cidade 24

Há anos que venho a embirrar com o facto de Lisboa fechar a cozinha cedo. Já perdi a conta ao número de noites de folia, ou de stress pós traumático laboral, em que esganada de fome bati com o nariz na porta de restaurantes que já não servem pratos, nem copos, nem sequer uma cadeirinha para sentar e descansar os ossos. Para um país que acaba tarde o trabalho, cujos ritmos dos seus habitantes estão cada vez mais longe do ciclo 9 às 5 e demoram, muitos deles, horas infinitas nos percursos casa-trabalho-casa de amigos-eventos culturais e festivos... fechar a cozinha cedo é um pecado. É claro que podemos ir para casa e fazer-nos ao frigorífico e ao fogão (dirão os mais orientados na vida) mas isso dá trabalho e não tem, como diz a F., o "ambiance" do restaurante ou do bar. Lisboa tem de contemplar cada vez mais os galdérios e os que sofrem do "síndrome de fome nocturna súbita", como eu. E os galdérios e doentes são muitos. Há, e vão surgindo aqui e ali umas honrosas excepções, e a coisa parece começar a compor-se, mas ainda não se pode falar num roteiro gastronómico lisboeta fora de horas. E lá vamos nós debulhando umas tostas mistas (maravilhosa invenção para quem pode comer pão a toda a hora) nos bares. Eu depois de comer uma tosta dá-me vontade de dançar a noite inteira ou caminhar bairro acima e abaixo para desmanchar as calorias na calçada (se for de saltos então, a marcha trabalha músculos de que às vezes nem nos lembramos ter). Mas do que eu não estava à espera era de me queixar disto: Lisboa também devia começar mais cedo! Porque há quem se levante cedo e queira ir para uma esplanada cedo e tomar o pequeno-almoço cedo, ler a sua revista e pensar na vida com uma limonada ou um chá... cedo. Esta é que nunca me tinha ocorrido... Mas digam-me lá se faz sentido, em plena Baixa-Chiado, por exemplo, à pinha de turistas, que se levantam cedo, estarem praticamente todos os sítios mais giros fechados às 9 da manhã? Como pode ser que em pleno Verão caminhemos por uma das zonas mais turísticos da cidade e a maior parte das esplanadas e espaços de restauração abrirem às 10H, ou às 11 ou até ao meio-dia como confirmei eu hoje? É claro que há muitos locais que às sete da manhã já estão a fritar bifanas ou a servir meias de leite, mas sabem que eu estou a falar de outro tipo de espaços, daqueles onde apetece estar e, sobretudo, esplanar. Hoje andei a torrar ao sol grande parte da manhã à procura de um lugar à sombra, para ver a cidade passar e, assim entretida, pensar no dia antes do dia propriamente dito e o máximo que consegui foi, já eram nove horas, sentar-me numa muito nobre esplanada do Chiado onde o pequeno-almoço custou o que eu não queria pagar para estar ali. Mas bem se safam, pois não havia mais nada aberto e ainda tive de esperar por mesa. Não me interpretem mal, a esplanada é boa e a história do local honra a cidade, e bem faz a gerência em abrir cedo, pena é que outros não sigam o exemplo. Caros comerciantes da restauração, pensem nas pessoas que adormecem tarde e se levantam cedo, nos que se levantam tarde e vão para a cama tarde, nos que se lavantam cedo e vão para a cama cedo, pensem em todos nós, pensem na vossa carteira e no futuro de Portugal. Abram a cidade a tempo de todos comerem e beberem à hora certa para cada um. A mim já me basta ter uns quantos amigos e a família disseminados pela Área Metropolitana de Lisboa, e outros em cada ponta de Lisboa, cada um com seu horário, que é uma chatice para combinar qualquer coisa e às vezes parece que estamos a organizar uma mega conferência internacional, com mapas de localização enviados por e-mail, combinações avulsas de boleias a partir de várias casas e empregos, ou em esquinas e ruas que depois ninguém sabe bem como se lá vai, enfim. São horas que se demoram a combinar locais de encontro que sejam acessíveis, que ainda não tenham fechado com base na fórmula: distância, trânsito, ponto de partida e dechegada... A matemática que aprendemos na escola não nos ensinou isto. No meio de tudo apanho sempre muita fome e muitos nervos. Sobra a amizade, que sempre nos salva, e o frigorífico lá de casa.

14 julho 2009

se...

Se eu fosse uma bandida, seria assaltante de bancos ou de obras de arte. O prazer de roubar os bancos é quase igual ao prazer de possuir um Renoir.
Se eu tivesse nascido na América seria agente do FBI.
Se eu tivesse dinheiro para ir à América, andava meses a atravessar o território num descapotável a ouvir Johnny Cash, sem largar as botas texanas e os chapéus da série Dallas.
Se eu não fosse portuguesa seria espanhola ou americana (ou estadunidense, como diz o M. e bem), que é tudo o que quisermos ser.
Se eu não tivesse amigos juro que os comprava. Em leilão ou nas boutiques que eu confio pouco nos saldos.
Se eu nunca tivesse sido amada estaria agora a aprender tudo do princípio, o que até podia ser bom para não fazer parvoíces ou não me armar em parva, que é quase a mesma coisa.
Se eu não fosse a eterna filha, não tinha chegado à conclusão que quero ser mãe.
Se eu não tivesse começado a andar tão cedo (ainda nem dez meses tinha) não tinha os joelhos tortos e viveria a tempo do tempo.
Se eu tivesse feito aulas de canto e de representação podia ganhar um Óscar.
Se eu não delirasse não escrevia posts destes.

poder, esse escultor das relações

Palpita-me que sobre o poder e as relações, ou o poder nas relações, ou o poder das relações ainda hei-de escrever muito. As duas palavras, unidas pelos diferente artigos, sugerem inúmeras combinações e atalhos. E o tempo, que também é um escultor, como dizia Yourcenar, me dará um pouco de si para isso. Espero. Na espera, que não é a acção da vida em que sou melhor, confesso, compenso-me a concluir orgulhosamente que já passei da atracção pelo poder (poderoso afrodisíaco), à consciência da forma como uso o poder ou a ambição dele no início ou promessa de cada relação. É de facto tudo uma questão de poder. Não de quem manda, não de quem chega mais longe, não de quem brilha mais. É o poder de usar a outra pessoa para definir-me como eu acho que devo ser. Arrisco a dizer também: como eu acho que os outros me vêem ou me querem ver. E mais por agora não consigo dizer. É uma questão de tempo.

12 julho 2009

silêncio (ou a contrição de uma tagarela)

"A coisa mais difícil e mais bonita de partilhar entre duas pessoas é o silêncio".
Acabei de ler isto no último livro de Miguel Sousa Tavares, No teu deserto. Para uma rapariga como eu que sempre privilegiou a palavra, que tem fama de tagarela, e que, como diz a minha mãe, tem sempre conversa e até consegue falar com um chinês (!), o silêncio é um lugar para onde vou apenas quando estou cansada. Cansada demais para falar, portanto. É a reserva natural que vejo numa imagem da revista, à qual nunca vou mas que está guardada para um dia quando for fazer aquelas férias sozinha no meio da natureza; é a viagem de carro sem ouvir rádio (onde é que já se viu conduzir sem ouvir rádio?) que um dia hei-de arriscar; é enfrentar o mar diz a fio sem que ninguém me atire água ou vá comigo à esplanada dissertar sobre a vida, o amor e as vacas, como dizia o filme; é, enfim, como prescreve o MST, estar ao lado de um homem sem falar, mas também, e isto é o elo que me falta, sem ouvir. Porque eu sou uma boa conversadora, daquelas que também ouvem. Gosto particularmente de ouvir os homens falar e depois segue-se um jogo interminável de ping pong, que é actualmente o único exercício que pratico. Eu ping e ele(s) pong. Os meus amigos já me disseram que eu devia meter-me num frasco e ser distribuída como "desbloqueador de conversa" concentrado.
Lembro-me, a propósito disto, de um episódio que aconteceu há uns anos na faculdade, no bar, mais concretamente, e que gerou risos entre as minhas amigas. Havia um rapaz que nos inspirava, à G. em particular, alguma curiosidade; era calado, não particularmente bonito, mas era aquilo a que convencionámos designar "com piada". E toda a gente sabe que um homem com piada é o suficiente para criar o estado de sítio entre as mulheres. A G. até lhe deu uma alcunha, era o "Turra". E, naquele ano de caloiras, foram meses a fio de trocas de olhares na fila da cantina, no bar, nas festas, nos corredores. O rapaz só falava com rapazes e parecia-me a mim às vezes que de parvo o "Turra" não tinha nada e sabia o efeito que causava, apenas não sabia (ainda, porque entretanto deve ter aprendido) o que fazer com isso. Finalmente, à beira do fim das aulas do primeiro ano, eu, que já tinha transferência agendada para outra faculdade (com muitos menos rapazes com piada, vim depois a descobrir...) decidi livre de constrangimentos ensaiar um jogo de ping pong com o "Turra". Palavra de honra que nem me lembro como começou a conversa, sei apenas que aconteceu tudo de forma muito espontânea, na fila do bar, algures entre o pedido de um Compal de pêssego (na altura ainda não havia o Compal light manga laranja, e eu ainda comia croissants com chocolate, prova de que foi há muitos anos...) e um guardanapo. Algures em campo eu ping, ping outra vez e ele... pong. O "Turra" era um jogador nato, à espera que alguém fizesse o primeiro serviço. Falámos, falámos, falámos, juro que não me lembro de quê, mais de uma hora. As minhas amigas estavam de boca aberta e olhavam para nós com um ar entre o muito divertido e o espantado. Gostava de dizer que foi o início de uma bela amizade, mas não. Há casos assim. No fim do jogo, cumprimentámo-nos, limpámos à toalha o suor que ficou das emoções destiladas e cada um seguiu a sua vida.
A conversa que se seguiu entre as raparigas durou muito mais tempo, muitas horas, e do "Turra" partimos para outros, para outras, para a sempre infindável romaria de assuntos que temos entre nós até hoje. Mas a pergunta que me lançaram de imediato foi esta: De que é que tu tanto falaste com o homem este tempo todo? E eu devo ter respondido a verdade: de coisas. E ao longo da minha vida assim tem sido, arranjo sempre coisas para dizer, para as mais diversas pessoas e feitios, nos mais variados contextos profissionais e sociais, sobre os mais variados assuntos. Já tenho perguntado se dou seca, ao que me respondem invarialvemente que não, que não dou, que sou também boa ouvinte. E eu acredito.
E assim as minhas relações são sempre com muita conversa. Estruturadas por ideias e emoções, por disparates, risos, profundidades e, quero crer, palavras de conforto e de ajuda, mas também indignação, crítica, argumento, provocações e um pouco de "eu sei", "eu já sabia", "eu tenho um presentimento"...
Com os homens, e porque a fala do romance do MST com que inicio este post é a isso que se circunscreve - à relação entre homem e mulher, tem faltado esse silêncio, ou melhor, tem faltado, da minha parte pelo menos, dar valor a esse silêncio. O verdadeiro. Onde eu não falo, ele não fala, e as bolas e as raquetes estão arrumadas a um canto. Se calhar falta-me a capacidade de olhar para um campo vazio, repousar na bancada, ver a rede a baloiçar no vento, como fronteira abandonada entre as palavras que podemos guardar para nós. Porque eu e ele já saberemos de cor todas as palavras que foram necessárias até ao momento, e esperaremos serenamente as que se seguirão, quando retormarmos todas as conversas do mundo que connosco jamais se esgotarão.

09 julho 2009

criações mamíferas 3

Banalizar o sentimento de saudade.

É tão nossa a palavra que somos vítimas dela constantemente. Saudades? Não basta tâ-las ou senti-las. Não basta dizê-las. Há que fazê-las caminhar até ao outro, com a alma a bater nos pés.

08 julho 2009

criações mamíferas 2

Não compreender a diferença entre uma pessoa complicada e uma pessoa complexa.

É assim tão difícil? Uma coisa é arranjar problemas onde eles não existem, outra coisa é enfrentar os problemas porque eles existem. Uma coisa é sujar o tapete de areia porque não se limparam os pés à entrada, outra coisa é a areia estar lá e recusar varrê-la para debaixo do tapete. São mesmo coisas muito diferentes. Fácil.

05 julho 2009

o gosto dos outros 3

"Estou bem
Aonde não estou
Porque eu só estou bem
Aonde eu não vou"

Estou Além, António Variações

O mais difícil da existência parece ser simplesmente estar. Ninguém quer simplesmente estar. E isso não deveria ser o mais fácil? Nada nos afasta da realidade do verbo estar. Estamos sempre, aqui e agora. Estar é a presença que não se esgota nem se compadece de qualquer emoção. Mal ou bem, com felicidade ou angústia, bem vestidos ou desalinhados, no topo ou nos arredores do que ambicionamos... estamos. O além é uma ilusão. O presente é a única certeza. 'Tá-se.

03 julho 2009

festa (e um exercício de futorologia)

Hei-de andar a passear serenamente na Baixa elevada a Património da Unesco, com o cabelo empoderado de laca amiga do ozono (queira Deus que sem bengala que eu vou fazer shiatsu até morrer), os meus filhos (hoje estou muito optimista) são os políticos que levaram o país a zero por cento de abstenção, os meus netos (continuo optimista a falar assim no plural) vivem felizes numa cidade de bairros, andam em boas escolas públicas e não comem porcarias, as minhas amigas envelheceram bem e continuam a aturar-me, os meus amigos também envelheceram bem e continuam a achar-me gira (hoje também estou particularmente modesta), os homens que amei são todos meus amigos e há-de haver um que escapou e está ao meu lado, não haverá sem-abrigo nem pedintes na rua, Lisboa será a capital da confederação das cidades mais avançadas da Nova Terra (soa tão bem)... e eu hei-de sempre, sempre, sempre... gostar de festa, imagine-se. No culminar da existência é assim que me imagino: a festejar. A rir no meio de vozes e de caras que me aconchegam, com um tinto para comemorar, um colar especial, um vestido que brilhe, o sorriso dos amigos, a lembrança sentida dos que partiram, a música que está inscrita em cada top ten da minha vida. A festa, eu sei, que eu já agora amo tanto, será melhor ainda no final da etapa que comecei nos anos setenta do século passado. O meu mapa do céu estará a completar-se e juntarei todas as comemorações. Serão as melhores festas da minha vida. A bola de espelhos está encomendada e haverá bar aberto.

26 junho 2009

decretos

Quando eu for grande... É assim que tudo começa. Os homens que escolhemos (embora às vezes ainda achemos que são eles que nos escolhem... ), as relações de amizade que colhemos, as relações de trabalho com que nos comprometemos, o dinheiro que nos sobra ou que nos falta logo aos primeiros dias do mês, enfim, os embrulhos que damos à nossa vida começam num decreto que exaramos se calhar no colo dos pais ou quando reviramos as panelas na cozinha, nesse mundo que só alcançamos a poucos centímetros do chão. Há decretos com piada. Eu, por exemplo, dizia que quando fosse grande ia andar sempre muito pintada e muito arranjada. Há outros que têm uma piada relativa, como afrmar que quando crescermos vamos fazer tudo o que nos apetece e que ninguém vai mandar em nós (sim, esse também era o meu decreto). Há outros que não têm piada mesmo nenhuma, como decretar que todos os homens estão abaixo da qualidade e da perfeição do pai ou na periferia do altar da mãe... Estes lixam-nos. Porque com ou sem piada todos os decretos que fazemos na infância são, parece, estruturantes do nosso percurso. São trunfos, alguns, e forças de bloqueio, outros. E é na idade adulta, com a bagagem a rebentar pelas costuras, que sentimos os seus efeitos. Muitas vezes, esses decretos têm a parceria jurídica dos adultos, os consultores que ajeitam os nosso tótós com lacinhos e nos dizem que somos as meninas mais lindas e mais inteligentes do mundo, ou que dão uma palmada nas costas aos rapazitos (que ainda agora estão a descobrir que as meninas têm uma coisa que não é a pilinha) e lhes dizem que um dia vão conquistar as raparigas mais giras... Depois vem um tempo em que é preciso revogar esses decretos. Esse tempo é bem vindo. É bom quando se percebe que há leis que já não se aplicam. Que afinal não temos de ser a mais linda, o mais popular ou a bem comportada que não faz cenas. Que não faz mal chorar, que não perdemos a dignidade se mandarmos um berro de vez em quando e que os adultos que somos hoje são tão imperfeitos como os que conhecemos ontem. Somos todos crescidos a viver no mesmo sistema de justiça. Há decretos que podem cair por terra. Mesmo que depois fique um certo vazio legal.